Trocando de roupa para o Banquete Nupcial

Trocando de roupa para o Banquete Nupcial
Caminhada para o Céu

segunda-feira, 25 de março de 2013

Assim como Jesus nos dias da sua vida mortal nunca deixava de unir o pão do corpo ao da alma, Geraldo também procurava não só socorrer às necessidades corporais dos pobres, mas também às das suas almas.


 A VIDA PRODIGIOSA DE SÃO GERALDO MAGELA

CAPÍTULO XX 

O porteiro 

O santo caminhava para o termo da sua carreira; tinha ainda dez meses apenas de vida, findos os quais essa bela estrela, que tanto se elevara no horizonte brilhando sempre com mais viva luz, deveria apagar-se às vista dos mortais. Um pressentimento do fim que se aproximava, acompanhou o irmão a Caposele. 

Também lá foi-lhe concedido, como em outro lugar, a felicidade de ter como superior um homem, não só de valor para o desempenho do seu cargo mas de influência salutar sobre ele. 

Se na chefia da casa não se achava já o seu diretor e pai, o Pe. Giovenale que regia o convento por ocasião da dura prova por que passou, o Pe. Gaspar Cajone, novo reitor não lhe ficava atrás em virtude e habilidade, e pertencia como o Pe. Cafaro e o Pe. Fiocchi, aos ornamentos e alicerces da Congregação. 

Cajone nasceu na cidade episcopal de Tróia, no reino de Nápoles, a 4 de agosto de 1722. A princípio pretendeu dedicar-se ao serviço do governo, plano esse que abandonou ao completar seus vinte e quatro anos de idade. Ocasião para isso foi a missão pregada por Santo Afonso em Tróia. 

No processo da beatificação do santo conta Cajone: “Eu assistia às pregações de Afonso e, sem dele me ter ainda aproximado, formara já alto conceito da sua santidade. Suas vestes pobres, a modéstia do seu exterior, seu recolhimento contínuo, o zelo apostólico com que anunciava a palavra de Deus, tudo isso insinuou-me o desejo de dizer adeus ao mundo”. 

Essa aspiração realizou-se uns anos mais tarde (1751) quando lhe caiu nas mãos o precioso livro sobre “a vocação à vida religiosa” que o santo naquela época entregara ao prelo. Leu-o atentamente e durante a leitura não só renovou-se o antigo apelo da graça mas também romperam-se os laços que prendiam seu coração ao mundo. Entrou no noviciado e na vida religiosa com a virilidade própria de sua idade e do seu caráter. 

Após dois anos de congregação, foi julgado apto para o cargo de reitor em Caposele, cargo esse em que prestou relevantes serviços ao Instituto durante longos anos. No capítulo geral convocado e presidido por Santo Afonso em Pagani (1764) foi eleito consultor-geral e exerceu esse cargo até o fim da vida. Em 1779 fundou a residência de Benevento, da qual foi o primeiro reitor. Incansável na vinha do Senhor, sábio conselheiro e santo religioso, austero, pontual e prudente, atingiu idade avançada, foi testemunha no processo da beatificação de seu pai espiritual Santo Afonso e faleceu a 30 de outubro de 1809. 
Esse era o homem que a Providência deu por superior a Geraldo no último quartel da sua vida. 

“A vida de Geraldo em Caposele, relata Tannoia, foi a mesma de Iliceto. Sempre humilde e paciente, mostrou-me continuamente amigo do trabalho, do recolhimento e da união com Deus. Todo ofício era-lhe agradável: na cozinha; na padaria, na portaria cumpria sempre o seu dever com indiferença de ânimo, porquanto, dizia ele, pode-se servir a Deus e fazer sua vontade em qualquer cargo. O Pe. Cajone afirma que Geraldo, por assim dizer, arrancava para si o serviço das mãos dos seus companheiros. Doente ou são, trabalhava sempre até ao cansaço”. 

Logo que Geraldo chegou a Caposele confiaram-lhe o cuidado da portaria. 
A aptidão do santo para esse cargo importante deduzimo-la das palavras que pronunciou ao receber as chaves da portaria: “Estas chaves devem abrir-me as portas do paraíso”. 

Prazer especial nesse novo cargo causou-lhe a incumbência de distribuir esmolas aos mendigos e necessitados que se apresentavam na portaria. 
Um dos seus biógrafos escreve: “O novo cargo proporcionou a Geraldo imensa satisfação por lhe estar unido o encargo de cuidar dos pobres. Não houve jamais mãe que tratasse de seus filhinhos com mais desvelo e solicitude do que Geraldo de seus pobres. Sabia jeito de não despachar a ninguém descontente; as explorações e grosserias não o vexavam nem impacientavam. Havia pobres, que depois de socorridos, voltavam segunda vez pedindo nova esmola. 

Geraldo bem os percebia, mas alegrava-se por reclamarem, embora ardilosamente, a sua caridade”. Desculpando-os dizia: “Nosso Senhor também rouba os corações”. Denominava-os “os meus pobres” ou “os pobres de Cristo” e mostrava-se, quanto possível, generoso para com todos. Santorelli censurou-lhe um dia em sua generosidade sem medidas. “Deveis fazer distinção, disse, e socorrer só os que são realmente indigentes”. “Absolutamente não, respondeu o irmão, todos devem receber alguma coisa porque todos me pedem pelo amor de Deus”. 

Que entretanto Geraldo fazia distinção, prova-o o desvelo que tinha para com os pobres doentes que não podendo ir à portaria, mandavam os filhos ou parentes em busca de comida. Os doentes recebiam caridade dobrada; por amor deles ia pessoalmente à cozinha e escolhia os melhores e mais leves pratos, às vezes tirava de seu próprio prato para lhes fornecer alimento mais delicado. Quando não encontrava coisa mais fina, dava-lhes pedaços de pão de trigo para o preparo de saborosa sopa. 

Às vezes obtinha permissão de revistar a dispensa do convento e alegrava-se quando lá achava doces ou passas para os seus doentes. Com ternura dizia: “Para os doentes pobres precisamos sacrificar tudo, porque eles são a imagem de Jesus Cristo. Esse mesmo pensamento exprimiu-o ainda mais engenhosamente com as palavras: “O SS. Sacramento é o Cristo invisível e o pobre doente é o Cristo visível”. 

Quando tinha licença levava pessoalmente os donativos ao domicílio dos pobres enfermos. Nesse caso levava não somente esmola mais copiosa e remédios, mas ainda lenitivo e conforto com palavras repassadas de caridade e consolo celestial. 
O Pe. Tannoia referindo-se a essas visitas do santo ao domicílio dos pobres escreve: “O que Geraldo dava na portaria era o menos. Quantas famílias, que não podiam ir ao convento eram sustentadas por sua caridade! quantas viúvas recorreram a ele com excelente resultado! quantos esforços não envidou e quantos meios não empregou a fim de arranjar boas colocações para moças e assim desviá-las dos perigos facilitando-lhes um bom casamento!” 

Em se tratando dos pobres, a sua confiança em Deus não tinha limites, como se tivesse hipotecada em mãos a garantia da Providência; e não se pode negar que o Senhor o abençoou nessa sua confiança. 

Preparadas as comidas para o almoço entrou Geraldo uma vez na cozinha com as vasilhas dos pobres. O cozinheiro, humanamente falando, não era grande amigo do generoso pai dos pobres, que o pusera muitas vezes em tristes apuros. Observou-o pois atentamente. O santo examinou as comidas preparadas e pôs-se a tirar tanto das panelas que o cozinheiro perdeu a paciência e gritou-lhe: “Que estais fazendo aí, irmão?, para a comunidade então não fica nada?” Geraldo respondeu: “Deus providenciará” e continuou a tirar até encher todas as vasilhas. “Vamos ver onde vai parar isso” murmurou o cozinheiro supondo que a comida não bastasse para os confrades. 

Mas, ó prodígio! na hora da refeição não faltou coisa alguma; pelo contrário, sobrou muito e ainda se pôde dar mais aos pobres. 
Caposele necessitava naquele tempo de um porteiro caridoso e miraculosamente protegido pela Providência. Excepcionalmente frio o inverno daquele ano, e excessivamente escassa a colheita de 1754; daí a fome dos indigentes já no mês de dezembro. A região de Caposele sofreu imensamente com isso; eis o motivo do aumento extraordinário dos mendigos à porta do convento. Todas as manhãs lá compareciam cerca de duzentos pobres; homens, mulheres, crianças e velhos. O Pe. Cajone recomendou ao porteiro muita solicitude com os pobres. “Irmão, disse-lhe, agora deveis pensar em tudo! se não cuidardes dos pobres, morrerão todos. Não vos imponho limites, permito-vos empregar para isso tudo o que temos em casa”. 

O reitor não precisou dar duas vezes semelhante ordem; Geraldo pôs-se imediatamente em ação em prol dos pobres. 
Aquela pobre gente andava mal vestida, quase nua, sofrendo por isso horrivelmente as inclemências da temperatura. Geraldo procurou remediar esse mal na medida do possível; percorreu a casa, examinou os armários da rouparia, tirou as vestes usadas com as quais beneficiou grande número de indigentes. 
Reduziu ao extremamente necessário a sua própria roupa para poder auxiliá-los. 
Devido ao rigor do inverno os pobres sofriam não pouco com a espera na entrada do convento; Geraldo mandou levantar lá uma fogueira para aquecer sua pobre gente. 

Comovia-se até às lágrimas ao ver as criancinhas que o rodeavam a tiritar de frio. Exclamava: “Nós pecamos, e estas criancinhas tem de sofrer por nossa causa”; tomava-lhes as mãozinhas e acalentava-as entre as suas, vendo nos inocentes a pessoa de Jesus que sofreu inocente pelos nossos pecados. 

Na proporção que se aumentava a miséria, crescia a confiança do santo na divina Providência; e quanto mais se intensificava esta, tanto mais se manifestava o auxílio direto do céu. Acontecia encontrarem-se no convento somas de dinheiro, de cuja pro-cedência ninguém tinha conhecimento, e que bastavam justamente para socorrer as necessidades dos pobres. “Três ou quatro vezes, conta o Pe. Cajone, apresentou-me o servo de Deus não insignificante importância de dinheiro, encontrada à porta da casa. Só Deus e Geraldo sabem de onde veio e quem lá a deixou”. 

É impossível descrever quanto pão e quantos víveres o santo distribuiu. “Era opinião geral em Caposele, escreve Tannoia, e os nossos o viram muitas vezes, que o pão se multiplicava nas mãos de Geraldo. Um dos nossos clérigos atestou ter visto os cestos, esvaziados por Geraldo, encherem-se subitamente de pães; um outro relatou que um cesto cujo conteúdo Geraldo havia esgotado, imediatamente depois se achou ainda mais cheio do que antes”.  

O irmão encarregado da padaria notou uma vez que Geraldo havia distribuído entre os pobres todo o pão da dispensa, de sorte que para a comunidade não sobrou nem uma fatia. O irmão calou-se; poucos minutos antes do jantar foi dar parte do ocorrido ao superior; embora de manhã tivesse enchido o forno, não restava nada para os confrades. O Pe. Cajone mandou chamar Geraldo e repreendeu-o diante do acusador mostrando-lhe a imprudência com que agira, porquanto naquela hora era impossível comprar pão fora do convento. Geraldo ouviu calmo e modesto a repreensão do reitor, dizendo depois: “V. Revma. não deve temer, Deus providenciará!” e dirigindo-se ao confrade continuou: “Meu irmão, olhai melhor e vede se não sobrou pão”. — “Nem um pedacinho, replicou este um tanto agastado, e para vos convencerdes disso, vamos juntos à dispensa”. 

O humilde Geraldo acompanhou o irmão que apressou os passos até o depósito dos pães. Com a mão na tampa disse: “Vede, vede se há aqui um pedaço sequer” e abriu a caixa. Esta estava cheia até em cima”. Louvado Deus! exclamou Geraldo e foi imediatamente à igreja para agradecer ao Senhor. O irmão que censurara a liberalidade de Geraldo, ficou mudo de assombro. Nesse estado encontrou-o o Reitor, que ao ver tanta quantidade de pães, pediu explicações ao acusador. “Meu Padre, respondeu ele, Geraldo é de fato um santo e eu quis que V. Revma. lhe desse uma penitência, quando fui ter com V. Revma., aqui não havia uma migalha de pão e agora, vindo aqui com Geraldo, encontrou pão em abundância. Isto ninguém, senão Deus, podia ter feito!” “Sim, replicou o reitor, foi Deus quem o fez; deixemos Geraldo agir, porque Deus está com ele”. 

Desejando Geraldo causar especial alegria aos pobres preparou-lhes com o auxílio dos confrades uma boa quantidade de macarrão. Chegada a hora da repartição o servo de Deus levou a macarronada à portaria, mas eis os pobres eram muito mais numerosos, naquele dia, do que em outras ocasiões. Não havia proporção entre o macarrão e a turma dos mendigos. Geraldo não se inquietou; distribuiu, encheu prato por prato sem parcimônia. A macarronada deu para todos e ainda sobrou com admiração dos irmãos que auxiliaram Geraldo. As comidas aumentavam-se nas mãos do servo de Deus. 

As muitas distribuições causaram sensível diminuição de trigo na dispensa. O Pe. Cajone que não queria tentar a Deus quis limitar um pouco a liberalidade de Geraldo e disse-lhe: “Irmão, dai o que puderdes, mas nada falte à comunidade”. Geraldo respondeu: “Não vos inquieteis, meu padre; Deus, como o espero, providenciará tudo”. Ah! Irmão, replicou o superior, vós quereis milagres à força”. 

Em seguida o padre Cajone desceu ao celeiro e vendo-o repleto reconheceu infundado o receio de vir a faltar o pão. Assombrado voltou para casa, onde encontrando-se com Santorelli, que entrava, disse: “Meu caro doutor, estou pasmo de admiração. A nossa provisão de trigo estava já esgotada. Queixando-me disso a Geraldo, ele respondeu-me do seu modo cheio de fé: Deus providenciará. 

Acabo de examinar o celeiro e encontro-o cheio. Eu me confundo diante do poder taumaturgo e da virtude do nosso santo irmão”. 
Amparado assim pela Providência, o santo aliviou a necessidade de muitas centenas de pobres nos meses de janeiro e fevereiro de 1755 em que se revelou mais aguda a carestia. O santo sentia-se tão contente e grato para com Deus que, nessa ocasião não era preciso nada de extraordinário para o inundar de prazer e alegria. 

Em Caposele vivia um habilíssimo flautista e cantor por nome Felippe Falcone. Esse pobre cego era um dos melhores amigos de Geraldo e dos mais assíduos à portaria. Um dia disse-lhe Geraldo: “Toca”. — Que quereis que eu toque? perguntou o cego. “Toca o hino 
Il tuo gusto e non il mio 
Voglio solo in te mio Dio etc. 

Geraldo, já às primeiras palavras, aprofundou-se nos sentimentos por elas expressos. Enebriado do amor divino, pôs-se a saltar e a dançar repetindo as palavras do hino: “Não o meu mas o vosso gosto” De repente cessaram os movimentos, os olhos do santo fitaram o céu e na presença de todos Geraldo elevou-se nos ares na altura de alguns palmos. 

Assim como Jesus nos dias da sua vida mortal nunca deixava de unir o pão do corpo ao da alma, Geraldo também procurava não só socorrer às necessidades corporais dos pobres, mas também às das suas almas. 

Antes da distribuição do pão ensinava regularmente aos pobres o catecismo. Colocados, em grupos, todos os indigentes, as crianças na frente e os adultos atrás, falava-lhes das verdades da fé e dos deveres do cristão acomodando-se à capacidade compreensiva dos ouvintes. Para movê-los à paciência e à resignação, mostrava-lhes Jesus a carregar sua pesada cruz. Exortava-os à oração e à recepção dos santos sacramentos, sugerindo-lhes sentimentos de contrição e ódio ao pecado. 

As catequeses de Geraldo eram bálsamo para os pobres, e beneficiavam também a muitos outros que não pertenciam à classe dos mendigos. 
Ao correr a notícia de que Geraldo unia às esmolas palavras de salvação, muitos moradores de Caposele afluíam à portaria na hora da distribuição para ouvir as explicações do santo irmão, e não poucos aprenderam verdades que ignoravam, ou sentiram emoção santa que nunca haviam experimentado até então. 

“Era belo ver, diz Tannoia, como muitos dos ouvintes iam à igreja e contritos se prostravam aos pés do confessor. Diversos, de vida escandalosa, e remissos na recepção dos sacramentos, aproximaram-se humildes do tribunal da penitência, convertidos pelas palavras de Geraldo”. 

Entre essas conversões sobressai a de uma moça, aparentemente piedosa, que vivia em sacrilégio e má vida; iludia a si e aos outros e não se preocupava com as admoestações dos confessores. Um dia apareceu também ela à portaria. Geraldo conheceu logo a podridão de sua alma; despachados os mendigos, chamou-a à parte e pôs-lhe em vivas cores diante dos olhos o estado deplorável da sua alma. A admoestação do santo surtiu efeito; a pecadora caiu em si; Geraldo enviou-a ao Pe. Fiocchi em Iliceto, onde entre lágrimas e soluços fez a sua confissão. A sua vida posterior provou terem sido sinceras as suas lágrimas. Humildemente narrou em público os seus desvarios e o modo como fora convertida por Geraldo. O Pe. Cajone em uma relação posterior louva a sua perseverança. “Ela continua, diz ele, com edificação geral e não pode lembrar-se de Geraldo sem soluçar de saudades e gratidão”. 

Essa recordação grata muitas vezes acompanhada de lágrimas, não era coisa rara entre os que apareciam à portaria de Caposele, se encontravam com o santo e dele recebiam o pão e o consolo. A fisionomia de Geraldo ficou indelevelmente gravada na lembrança dos pobres que dele falavam como de um pai e o veneravam como a um santo. 

Esse amor de Geraldo aos pobres era um eflúvio da sua perfeita caridade, o que se depreende do seu procedimento para com todos, especialmente com seus confrades. Lembramo-nos que em Nápoles o santo consolava o Pe. Margotta e lhe predissera para mais tarde a cessação dos seus escrúpulos e sofrimentos interiores. Em Caposele o santo não esqueceu o seu caro confrade; pedia com instância a Deus, quisesse libertá-lo dos seus sofrimentos; não contente com as orações ofereceu-se a Deus para tomar sobre si o peso que acabrunhava o pobre sacerdote. E o Senhor aceitou esse generoso oferecimento. 

O médico Santorelli, penetrando um dia em sua cela, viu-o com a pena na mão e perguntou-lhe: “Que fazeis aí?” “Estou escrevendo, respondeu o irmão, ao Pe. Margotta para lhe participar a cessação dos seus tormentos e exprimir o meu contentamento”. E de fato o Pe. Margotta viu-se livre, em Nápoles, dos seus sofrimentos espirituais, no momento em que Geraldo lhe escrevia; o santo porém foi assaltado de uma melancolia, que destoava imensamente da sua jovialidade habitual. Seus olhos perderam o brilho e o sorriso desapareceu dos seus lábios; parecia oprimido e acabrunhado de desânimo desolador. O superior perguntou-lhe pela causa da sua tristeza e Geraldo teve de revelar o segredo. “Eu não tinha coração, disse, para ver sofrer tanto o nosso Pe. Margotta; ofereci-me a Jesus para ser torturado em seu lugar”. 

O fato seguinte mostra-nos ainda mais claramente a genuína e profunda caridade do santo. 
A arte de confeccionar Ecce-homos e crucifixos, aprendida em Nápoles, Geraldo a exerceu em Caposele com a permissão dos superiores. Para isso necessitava de tintas e cola, que lhe eram fornecidas por Estevam Sperduto, marceneiro do convento. Este, agastado com os repetidos pedidos escondeu as tintas dentro do quarto, para mais facilmente poder negá-las ao santo. Geraldo percebendo a mentira apontou-lhe o lugar onde estavam escondidos esses objetos. Apesar disso, o marceneiro tornou a ocultar o pote com as tintas e as colas. 

O novo esconderijo não foi menos impenetrável do que o primeiro. Geraldo encontrou tudo, mas não notou as tintas dentro do vaso da cola e, supondo tudo em ordem, colocou o pote ao fogo. A mistura das duas coisas estragou, naturalmente a ambas. Quando o marceneiro voltou para casa, vendo o acontecido indignou-se ao ponto de espancar o santo com uma bengala que tinha na mão. Geraldo pôs-se de joelhos exclamando: “Meu irmão, batei que tendes razão para isso”. A humildade de Geraldo acalmou o marceneiro, que arrependido disse: “Irmão supondes que vos quero matar; não, não vos quero mal, a raiva me cegou”. — E Geraldo, assim contou Sperduto mais tarde, nunca se queixou do meu mau procedimento e ficou sempre meu amigo. Eu porém reconheci nessa ocasião o seu grande valor que até então eu desconhecia”. 

A sua caridade, mansidão e humildade conquistavam-lhe em toda a parte amigos e admiradores. Entre esses merece especial menção o Dr. Nicolau Santorelli, que aliás era homem apto para travar relações de amizade com o servo de Deus. 
“Ele era, diz Tannoia, extremamente piedoso e terno venerador da SS. Virgem. Amava tanto a Jesus, que não podia furtar-se ao desejo da comunhão diária; passava muitas horas do dia em oração e união com Deus; mortificava-se e procurava crucificar-se promovendo com seus trabalhos a maior glória de Deus. Fundada a casa de Caposele, colocou-se sob a direção espiritual do Padre Sportelli e mais tarde, do Pe. Cafaro; todas as manhãs, quaisquer que fossem as inclemências do tempo, ia visitar o seu diretor espiritual e dar expansões à sua devoção na igreja. Assistia regularmente à pregação dos sábados e das novenas, bem como a adoração do SS. Sacramento, em se incomodar com a distância que não era pequena”. 

Apenas conheceu mais de perto o nosso santo relacionou-se com ele com a amizade de um irmão, procurando tirar proveito dos seus carismas extraordinários. Sempre que ia ao convento visitava o irmão e consultava-o sobre as necessidades de sua alma. De seu lado Geraldo correspondia fielmente à amizade de Santorelli, confiava-lhe os seus segredos e ajudava-o e a família dele em todas as dificuldades. 

Quanto aos outros veneradores de Geraldo, cuja amizade muito o consolou nos últimos anos da sua vida, mencionemos apenas o Cônego Bozzio, que vimos relacionar-se em Atella com o servo de Deus. Ele continuou em Caposele a amizade lá iniciada e sentia-se feliz por poder estar perto do servo de Deus e entreter-se mais vezes com ele. Em suas visitas e palestras ficou conhecendo a fundo o espírito e a vida do santo, de sorte que lhe foi possível deixar à posteridade uma relação muito interessante a respeito de Geraldo.  

Dessa relação temos já haurido algumas citações, demo-la porém em sua íntegra ao menos quanto aos pontos principais, de um lado porque manifesta claramente a estima em que Geraldo era tido, e do outro porque contém magnífico testemunho sobre o irmão. Essa relação conduz-nos naturalmente ao assunto do capítulo seguinte. 

“Desde o início da nossa amizade, diz Bozzio, deu-me Geraldo inúmeras provas da sua comprovada virtude. Eu tinha por certo (e julgo não ter errado) que o espírito do irmão estava constantemente abismado na Divindade; daí aquela união íntima com Deus, a qual se manifestava ora mais ora menos claramente. Tendo-se ele distinguido na união prática com Deus, isto é na conformidade da vontade humana com a divina, de maneira a falar sempre dela com profunda compenetração e a viver desapegado completa e constantemente das coisas terrenas, não duvido que Deus o tivesse também elevado à união com Ele. 

Prova disso tive pouco tempo antes da sua enfermidade mortal. Estávamos conversando a sós, quando ele me perguntou a significação de alguns versos do salmo 17 que começa com as palavras: Diligam te Domine, fortitudo mea (quero amar-vos, Senhor fortaleza minha), e em particular a significação das palavras Inclinavit caelos et descendit et ca-ligo sub pedibus ejus (inclinou os céus e desceu e a escuridão da noite estava sob seus pés). Entendi logo que ele queria falar da oração, que os místicos denominam contemplação na via negativa e que lhe dava, sempre que a praticava, a aparência de um homem envolto em trevas misteriosas. Dei-lhe alguma explicação, mas ele, experimentado no assunto, falou melhor do que eu. 

Em todos os seus trabalhos a vontade divina era o alvo a que aspirava. Essa aspiração não se perturbava nem sofria com a grande submissão que costumava prestar aos superiores. 

Seu ânimo permanecia sempre o mesmo tanto nos dias em que Deus o visitava como nos que dele se afastava; era sempre o mesmo na aridez como na abundância da luz. Mesmo quando seus sofrimentos internos se revelavam externamente, não se notava nele nenhuma contrariedade ou impaciência. 

A sua conduta era um misto de encantadora modéstia e graciosa jovialidade. Se algumas das suas ações pareciam esquisitas e estranhas, era o efeito da ininterrupta união com Deus e, em parte, do desejo que tinha de ser tido na conta de louco desprezível a todos. Ele possuía, aliás, claríssimo espírito e natu-reza moderada. 

Para expressar tudo em poucas palavras, digo que tenho por muito verossímil o que padres da sua Congregação e santos homens experimentados na vida espiritual têm afirmado, isto é que Geraldo possuía êxtases admiráveis, obediência em grau heroico a ponto de executar ordens que lhe eram dadas mentalmente; que ele se gloriava dos sofrimentos como os profanos de suas falsas alegrias, submetendo-se perfeitamente às determinações da Providência, por penosas que lhe fossem, e que ele tinha verdadeira fome dos sofrimentos. Também tenho como certo o que pessoas fiéis a ele têm relatado, isto é, que ele penetrava os corações conhecendo-lhes as tentações, inclinações não mortificadas, aridez e consolações; que ele podia predizer o tempo reservado para a purificação de uma alma, bem como os momentos próximos ou distantes das visitas do Senhor; e que ele tinha o dom da profecia e os dos milagres. 

No referente a sua obediência, poderão os padres da Congregação fornecer testemunhos mais exatos; eu posso assegurar que Geraldo sempre falava dela com o mais profundo respeito dedicando-lhe intenso amor em seu coração. Um dia achava-me eu no campo, durante o recreio, nas proximidades do convento de Caposele. O superior, que me tinha visto, ordenou a Geraldo me beijasse os pés, o que ele procurou fazer imediatamente. Querendo furtar-me a isso, apressei os passos; o santo correu e não podendo alcançar-me pediu que o esperasse. Para não o fatigar tive que parar e ele beijou-me os pés com suma satisfação. 

Diante de tudo isso, digo ser impossível o santo ter sido guiado por um outro espírito — humano ou diabólico — que não o espírito divino. Mesmo que não houvesse outras provas, bastariam para isso o seu heroísmo na obediência e a conformidade com a vontade de Deus, bem como a sua constante jovialidade de coração. O exercício dessas virtudes é a prova cabal de que Geraldo se deixava guiar tão somente pelo espírito de Deus, porquanto as coisas extraordinárias são livres de todas as possíveis ilusões pela prática dessas virtudes. Quando ao sofrimento suportado por amor de Deus (o que se dá com Geraldo) se une o desejo de sofrer ainda mais, atinge-se certamente o auge do amor possível neste mundo. 

Nesse amor aparece a alma no estado sublime de santidade , no qual o Apóstolo exclama: Vivo ego, jam non ego, vivit vero in me Christus. Vivo, mas já não sou eu que vivo, é Jesus que vive em mim”.   


domingo, 17 de março de 2013

O santo irmão dedicou-se também de modo especial aos doentes. Encheu-se de compaixão ao entrar no hospital dos incuráveis. Daí por diante visitou muitas vezes esse hospital.


A VIDA PRODIGIOSA DE SÃO GERALDO MAGELA
CAPÍTULO XIX 
   
Em Nápoles 

Em fins de julho de 1754 Geraldo deixou a solidão de Caposele para ir a Nocera dei Pagani. O Pe. Margotta, que na qualidade de procurador da Congregação, tinha de passar em Nápoles grande parte do ano, precisava de um irmão desde que seu companheiro, o Irmão Francisco Tartaglione, recebeu incumbência de tratar de outros negócios do Instituto. Grande admirador de Geraldo pediu-o a Santo Afonso por companheiro. 

O santo fundador aceitou gostosamente ao pedido de Margotta, porque conhecia a afinidade espiritual dos dois religiosos e queria de certo modo desagravar o irmão da sua dura provação com uma prova de confiança especial. 

Se isso consolou o Pe. Margotta, agradou, não menos, ao servo de Deus; e de fato a permissão de passar uma temporada ao lado do distinto sacerdote foi-lhe uma reparação pelas humilhações recebidas. 

O Pe. Francisco Margotta era um homem, que por suas purificadas virtudes podia ser colocado, com honra, ao lado do nosso santo. Em muitos pontos assemelhava-se a Santo Afonso. Em sua mocidade seguira quase a mesma carreira como o santo fundador. Nascido a 10 de fevereiro de 1699 em Calitri, de pais nobres, recebeu de sua mãe, após a morte do pai, uma educação verdadeiramente cristã. Já na infância mostrou inclinação declarada para a piedade e revelou todos os sinais de santidade, que costumamos ler nas biografias dos grandes servos de Deus. 

Fez seus estudos com tanto brilho que chegou a terminar o curso filosófico aos dezesseis anos. Desejando dedicar-se ao direito partiu para a capital do reino, onde levou vida pura e inocente, apesar dos encantos sedutores da grande cidade. Distinguiu-se desde a mocidade por uma devoção ardente a Jesus Sacramentado, edificando toda a cidade de Nápoles com sua conduta exemplar e modéstia angelical. 

Terminados com distinção os exames e obtido o grau de doutor em direito, voltou para sua terra. 
Ao talentoso jovem abriram-se naturalmente todos os caminhos das honras e alegrias terrestres; ser-lhe-ia fácil gozar o que o mundo chama felicidade, mas o seu espírito, já então, procurava coisa mais alta. Recusou o enlace matrimonial com uma moça da família Capucci em Lacedogna. Todos conheciam as suas intenções; quando, pouco depois, foi nomeado governador em Andretta, disse a gracejar um dos seus subordinados: “Estejamos alerta e procedamos bem: recebemos um capuchinho por governador”. 

E de fato a vida de Margotta como governador não diferenciava muito da de um religioso. Justiça, caridade e piedade foram virtudes que os moradores de Andretta admiravam diariamente no seu novo chefe. Do outro lado os seus parentes, muito a contragosto, percebiam nele pouco interesse para a administração dos seus próprios negócios temporais, sobretudo das finanças. 

A mãe pediu-lhe desistisse do cargo em Andretta e voltasse a Calitri, o que ele fez com grande prazer. Novas tentativas foram feitas para que ele abraçasse o estado conjugal, porém em vão; Francisco declarou peremptoriamente não querer coisa alguma no século. 

Um passeio de visita a seus parentes em Bisaccia decidiu-lhe a vocação. Lá vivia um santo sacerdote por nome Caetano Giuliani, discípulo do venerável Padre Antônio de Torres, o qual, depois de empregar grande parte da sua vida na pregação de missões, se havia retirado para a solidão afim de consagrar os últimos anos da vida ao negócio da própria salvação, sem todavia abandonar a direção espiritual de algumas almas privilegiadas. 

A aproximação desse santo sacerdote abriu para Margotta uma nova esfera de idéias. Atraído pela sublimidade do sacerdócio resolveu tornar-se padre; após madura preparação recebeu em 1731 o presbiterado das mãos do arcebispo de Conza. 

Daí por diante a sua aspiração era salvar almas e trabalhar, o mais possível, na vinha do Senhor. A fim de ativar-se com mais proveito no confessionário e no púlpito entrou para a Congregação dos missionários do Pe. Pavone, na qual se dedicou à sua vocação como um santo sacerdote, santo confessor e santo missionário. 

Quando porém a Congregação do SS. Redentor abriu a residência de Caposele, resolveu nela entrar (1747) depois de contribuir para a fundação dessa casa com considerável parte da sua herança paterna. 
Como redentorista distinguiu-se na pregação de missões e na direção de almas. Era modelo consumado de todas as virtudes, mormente de obediência e humildade. 

A palavra do superior era para ele a voz de Deus. Com alegria obedecia até aos irmãos leigos. Sua humildade corria parelha com sua obediência; procurava humilhações onde as podia encontrar. Seu amor ao SS. Sacramento e à SS. Virgem colocava-o no mesmo nível de Santo Afonso. 

Incansável trabalhava Margotta no aperfeiçoamento de sua alma e, enquanto o Pe. Cafaro esteve entre os vivos, seguiu com ardor a direção desse grande homem espiritual. 
No primeiro capítulo geral da Congregação (1749) o Pe. Margotta foi nomeado procurador geral do Instituto, cargo que exerceu até a morte, ocorrida em Nápoles a 11 de agosto de 1764. Como procurador hospedava-se com Geraldo no palácio do pai de Santo Afonso. 

Geraldo, nessa ocasião viu pela primeira vez a celebérrima cidade onde natureza e arte espargiram seus encantos, porém não perdeu nada do seu recolhimento e calma interior. Não se alterou sua alma mesmo no meio das ruas mais movimentadas da capital: “No meio das curiosidades de Nápoles, diz Tannoia, não perdeu o seu recolhimento, antes pelo contrário, ainda mais se concentrou sem Deus”.   

O palácio, que habitou com o Pe. Margotta, era-lhe fiel mentor para não esquecer na grande cidade, o que lá menos se tem em vista; tudo recordava-lhe as virtudes, os grandes e difíceis combates, as ardentes preces, as penitências de seu venerando Pai, Santo Afonso. 
Em perfeita união de sentimentos com o Pe. Margotta, desenvolveu-se entre essas duas santa almas, na esfera da virtude, uma disputa digna de todo o elogio e admiração. O fogo que ardia em um comunicava-se ao outro, nenhum queria ser excedido. 

Como os negócios não eram urgentes, usaram ambos, com avareza santa, dessa ocasião para se dedicarem à piedade e à oração. 
O Pe. Margotta dava preferência à igreja dos oratorianos para o exercício da sua devoção; lá celebrava o santo Sacrifício e permanecia horas inteiras de joelhos, prolongando suas orações muitas vezes até altas horas da noite. 

Geraldo não lhe cedia a palma, ardoroso, como era, no amor à oração, à meditação e à visita do SS. Sacramento. Terminados os seus poucos e necessários giros pela cidade e arrumada a cozinha, consagrava o resto do tempo à oração, aos exercícios de piedade e à visita aos diversos santuários da cidade. Nessas igrejas permanecia, às vezes, a metade do dia ajoelhado a um canto ou sobre o pavimento. 

Alegrou-se imensamente ao constatar em Nápoles a exposição perene do Santíssimo à adoração dos fiéis, o ano inteiro, ora numa ora noutra igreja.  
Assim encontrava facilmente ocasião de visitar o Santíssimo exposto todos os dias e de haurir assunto para as suas meditações. Às vezes iam os dois, Pe. Margotta e Geraldo, à igreja onde se achava exposto o Sacramento, caindo ambos numa espécie de êxtase de sorte que muitas vezes perdiam a hora de voltar para casa. 
Costumavam visitar juntos os lugares, onde podiam lucrar indulgências. 

Ao lado do Pe. Margotta e estimulado pelo fervor dele, Geraldo considerava a sua vida em Nápoles como um paraíso, na expressão de Tannoia; as palavras escritas nessa ocasião a Ripacandida são a expressão desses sentimentos: “Acho-me, escreveu, presentemente em Nápoles, com o Pe. Margotta e tenho tempo de desalterar minha alma na conversação com Deus”. 

Disputavam eles não só no amor de Deus e no seu serviço, mas também no rigor da penitência e na renúncia de si mesmos. O Padre Margotta andava pelas ruas de Nápoles como um “crucificado, na expressão de Tannoia, coberto de cilícios e cadeias de ferro, dormia sobre a terra nua flagelava-se cruelmente e preocupava-se tão pouco com o sustento do corpo, que por vezes o esquecia completamente”. 

Em tudo isso imitava-o Geraldo com perfeição. Também ele torturava seu corpo com cilícios, flagelava-se, tomava por leito a terra nua e muito pouco se incomodava com o pão material. Quando uma vez Margotta voltou para casa ao meio dia e perguntou ao companheiro o que havia preparado para o almoço, respondeu-lhe Geraldo em seu tom costumado de gracejo: “O que V. Revma. recomendou”. Queria dizer: “Nada”. — Diante disso crê-se facilmente o que um biógrafo de Geraldo escreve: “A vida de Margotta e Geraldo em Nápoles era um jejum contínuo; eles só matavam a fome, que sentiam de Deus”. 

Quanto à abnegação própria, Margotta praticou-a com tanta perfeição que não só exerceu a pobreza ao ponto de precisar ser obrigado a aceitar um hábito novo, mas até de ir de porta em porta mendigando nos conventos, sem se incomodar com as zombarias a que se expunha. 
Não procedeu de outra forma o nosso Geraldo. Como é sabido os Lazzaroni de Nápoles não pertencem à classe dos mais bem vestidos; não obstante até eles divertiam-se muitas vezes a custa de Geraldo e de suas vestes, tão pobremente andava ele trajado. Mendigar à porta dos conventos era também muito do seu gosto; aparecia ora só ora em companhia de Margotta à portaria dos oratorianos em procura de um pedaço de pão, confundindo-se com os outros mendigos; e teriam continuado esse modo de vida, se os superiores maiores não lhe tivessem proibido por inconveniente. 

Porém mesmo após essa proibição não lhes faltou oportunidade para a abnegação. Achava-se um dia Geraldo na oficina de um artífice quando lá entrou um homem do povo. Este aproximou-se de Geraldo, cumulou-o de grosserias, pôs-lhe os dedos nos olhos e no nariz dizendo: “Ó meu tesouro, como és belo!” O servo de Deus permaneceu insensível a esses gracejos de mau gosto; mas os presentes irritaram-se e ter-lhe-iam dado o merecido castigo, se Geraldo não tivesse intercedido pelo culpado. “Não é nada, disse, sou um pecador miserável. Que fez ele? quis divertir-se um pouco comigo”. 

A oficina em que isto se deu, era o lugar em que Geraldo gostava de passar boas horas durante sua estada em Nápoles; lá fabricavam-se crucifixos e imagens de Ecce Homo de carton-pierre. Desejoso de aprender essa arte pediu instruções ao mestre, grande amigo da Congregação e obteve ótimo resultado, chegando a confeccionar diversos crucifixos para distribuí-los entre o povo. 

Entretanto a vida de Geraldo em Nápoles não foi de completo silêncio. Como poderia ele ficar sem atividade? Onde há fogo, difunde-se luz e calor, por mais oculto que esteja. Como Margotta também Geraldo encontrou, sem procurar, ocasião para os trabalhos apostólicos. Pobres havia muitos na cidade e pecadores lá não faltavam. Quanto ao tratamento dos primeiros, Margotta foi exemplar; compadecia-se tanto deles que não raras vezes lhes dava peças de roupa necessárias para a sua pessoa. Encontrando um dia na cidade um pobre muito necessitado, deu-lhe os seus sapatos e voltou descalço para casa. 
A disputa santa de Geraldo com seu mestre nesse particular, mostra-o o episódio seguinte.  
O Irmão Francisco Tartaglione achando-se a negócio em Nápoles, entregou a seu confrade algum dinheiro para comprar víveres. De caminho Geraldo encontrou um indivíduo maltrapilho que vendia pederneira e mecha. O olhar compassivo do servo de Deus inspirou-lhe coragem; pediu-lhe tivesse dó de um miserável que estava a morrer de fome. 

Não foi preciso mais para o bom irmão se esquecer do pão e dos peixes: comprou do vendedor toda a pederneira e mecha. Ao voltar para casa Francisco Tartaglione perguntou a Geraldo pela refeição preparada. Como resposta, o santo abraçou seu confrade dizendo alegremente: “Porque tantos cuidados? Só Deus e nada mais”. — Está certo, replicou o Irmão Francisco, mas agora é preciso também pensar na refeição”. 

Mal pronunciara essas palavras, viu sobre a mesa as pederneiras e as mechas. “Que é isso?” perguntou. “Meu caro confrade, respondeu Geraldo, tudo isso nos pode ser útil; devo porém confessar-lhe francamente. Quando saí para fazer as compras, dei com um homem que vendia esses objetos; estava morto de fome, tive dó e com o dinheiro que me destes comprei estas coisas”. 

Embora descontente com essa resposta que não lhe matava a fome, ocultou Francisco seu desgosto admirando a grande caridade do santo. Entretanto Margotta voltou para casa. Geraldo foi logo participar-lhe o ocorrido e comunicar-lhe que havia feito a esmola presumindo a licença do superior. O Pe. Margotta sorriu-se e disse: “Mas que comeremos hoje?” “Deus providenciará” respondeu Geraldo. E de fato, na hora da refeição bateram à porta. “Eis o que nós esperávamos” exclamou Geraldo dirigindo-se à portaria em companhia de Margotta. Lá estava uma criada com um cesto repleto de víveres, presente de um senhor desconhecido. 

O santo irmão dedicou-se também de modo especial aos doentes. Encheu-se de compaixão ao entrar no hospital dos incuráveis. Daí por diante visitou muitas vezes esse hospital; lá ia de cama em cama, falando aos doentes da paciência, do valor dos sofrimentos, da resignação com a vontade de Deus, das alegrias do céu. Aos moribundos tratava com solicitude particular preparando-os para a morte e a entrada na eternidade. 

Às obras de misericórdia espiritual ajuntava ainda serviços corporais, fazia a cama aos doentes, limpava e pensava-lhes as feridas, dava-lhes o alimento e a bebida etc. Como não era lícito fazer sempre essas visitas aos enfermos, aproveitava-se dos dias em que eram permitidos pelo regulamento do hospital. 
Desvelo especial teve para com os dementes. Não sabemos como é que ele conseguiu licença de entrar no hospício dos alienados; os seus biógrafos dizem apenas que ele lá esteve muitas vezes. Era tocante vê-lo entreter-se com esses infelizes, acomodando-se aos diversos estados dos doentes e agindo salutarmente sobre aqueles espíritos perturbados, por meio de discreta alegria e mansa animação. Às vezes reunia-os ao redor de si no pátio, ensinava-lhes a invocar a Deus e os santos e esforçava-se para lhes inculcar submissão aos guardas e vigilantes. 

Essa caridade agiu eficazmente sobre os ânimos dos doentes mentais. Sempre que Geraldo aparecida, os loucos agrupavam-se ao redor dele como os filhos em torno de sua mãe. Alguns externavam a sua satisfação com palavras lisonjeiras. “Padre, diziam, vós nos consolais tanto, queremos estar sempre convosco, não nos deixeis mais”. “Não queremos que vá embora, exclamavam quando Geraldo se despedia, as coisas que nos dizeis, nenhum outro as diz; a vossa boca é do paraíso, queremos ouvir-vos sempre”. Às vezes Geraldo levava doces e frutas e repartia-os com os loucos para torná-los mais obedientes e dóceis. 

Só uma vez o apego dos infelizes a Geraldo quase teve conseqüências funestas. Estando o santo para sair, dois loucos saltaram e agarraram-no dos dois lados impedindo-lhe qualquer movimento. “Não, não queremos que vos vades” gritavam os doidos apertando-o sempre mais. Como essa ternura dos loucos se tornava sempre mais intensa, o irmão correu risco de ficar sufocado ou espremido. Felizmente um outro louco correu em auxílio do santo; dando murros saltou por entre os dois companheiros gritando imperiosamente: “Alto lá! nem tanta confiança com o confessor dos doentes!” Geraldo deu ainda alguns conselhos e retirou-se. 

Também em Nápoles o santo dedicou-se ao seu trabalho predileto: à conversão dos pecadores; nesse particular foi incentivado admiravelmente pelo zelo extraordinário de Margotta que envidava todos os esforços para reconduzir os extraviados ao caminho da virtude. Deus servia-se dele para instrumento de graça, como o prova o fato seguinte ocorrido durante a sua estada em Nápoles. 

Ao passar por perto de um palácio ouviu Margotta uma voz interior que lhe dizia: “Entra no palácio e dize ao senhor dele que se converta, porque do contrário será alvo da ira divina”. Encorajado sobrenaturalmente o Pe. Margotta entrou no luxuoso palácio e cumpriu a sua missão e não sem resultado. O rico pecador compungiu-se, cedeu às inspirações da graça e decidiu-se a romper com a vida passada para começar uma nova segundo o beneplácito divino. 

Geraldo imitou com honra o exemplo de Margotta. Lançava sua rede sempre que podia, e como diz Tannoia, não passou nem um só dia sem ver recompensada essa sua pesca d’almas. Sempre que, a negócio, passava por alguma venda, livraria ou oficina, esforçava-se por cativar os rapazes, mormente os operários que lá trabalhavam, a fim de os ganhar para a virtude. 

Quando percebia que algum deles trilhava mau caminho, não o perdia mais de vista e insistia até reconciliá-lo com Deus. Os convertidos tornavam-se geralmente apóstolos auxiliares do santo, procurando parentes e conhecidos e levando-os ao servo de Deus, de sorte que, na expressão de um seu biógrafo, a residência de Geraldo se tornou uma “ante-câmara da penitência”. O Pe. Margotta teve repetidas vezes a satisfação de receber das mãos do irmão, pecadores contritos para lançá-los nos braços do Redentor. 

A penetração das consciências foi também aqui, muitas vezes, o primeiro passo para a operação da graça, a primeira alavanca para remover o rochedo da culpa de um coração. Geraldo entrou uma vez em um negócio onde se vendiam rosários, medalhas e outros objetos de devoção. Lá se achava nesse momento, um sacerdote por nome Francisco Colella. Ao perceber-se na presença de dois sacerdotes o negociante pôs-se a discorrer sobre coisas edificantes dando aparências de piedade para assim fazer negócios mais lucrativos. 

Infelizmente a sua piedade não era real e a sua vida muito se distanciava das belas palavras que proferia. Depois de ouvi-lo longo tempo, Geraldo acenou-lhe para uma conversa particular. A sós com ele repreendeu-o fortemente por causa da sua hipocrisia e revelou-lhe um pecado gravíssimo que lhe pesava na consciência e do qual ninguém podia ter conhecimento; depois retirou-se deixando o pecador transido de assombro. Este, passado o susto, foi ter com Colella e disse-lhe: “Esse religioso deve ser um grande servo de Deus”. — “Que vos disse ele?” perguntou Colella. “Ah, replicou o negociante, estou como que fora de mim, descobriu-me um pecado que só Deus e eu conhecíamos”. É escusado dizer que o homem completou sinceramente a sua conversão.  

Antes de tudo procurou Geraldo exercer a sua caridade para com quem tinha sobre ela o primeiro direito, isto é o Pe. Margotta. 
Esse virtuoso sacerdote sofria cruelmente sob o peso dos escrúpulos; meses inteiros achava-se sua alma envolvida em densas trevas; seu espírito não encontrava luz, seu coração entristecera-se e sua vontade abatera-se em um profundo desânimo. Geraldo compadeceu-se do sacerdote, consolou-o, reanimou-o e teve a felicidade de ver seus esforços coroados de pleno êxito, como o próprio Margotta o confessou ao Padre Robertis. 

É certo que naquela ocasião não podia prestar-lhe todo o auxílio, como o próprio Geraldo o afirmou. Achando-se um dia o Pe. Margotta mais oprimido que de costume disse a Geraldo: “Vinde e vamos ao Irmão Cosimo em São Jorge para que ele implore de Nossa Senhora algum consolo para mim (ele referia-se à uma conhecida imagem na igreja dos Pios Operários). “Vamos, respondeu Geraldo, mas desta vez não conseguireis a graça”. Visitaram São Jorge, falaram com o Irmão Cosimo e pediram suas orações, mas ao voltar para casa sentiu-se Margotta ainda mais abatido e triste do que antes. Mais tarde, como veremos, conseguiu Geraldo restituir-lhe a paz e a consolação desejada. 

Se o servo de Deus deu provas de que lia no futuro, também demonstrou que coisas distantes não escapavam às suas vistas. 

 O leitor lembrar-se-á ainda do arcipreste Felix Coccione, que batizou o nosso santo. Ele tinha um irmão chamado Francisco que lhe sucedeu no cargo de arcipreste, gozando grande cotação em Muro. Esse digno sacerdote foi assassinado em plena rua. Geraldo, ao longe viu esse triste acontecimento e participou-o a três dos seus conterrâneos. Um deles conta o fato do modo seguinte: “Geraldo vinha muitas vezes a minha casa, onde rezávamos juntos o terço. Uma tarde pareceu-me ele extremamente abatido. 

À pergunta pela causa da sua tristeza respondeu: “Meu caro Paschal, nosso bom arcipreste Coccione acaba de ser assassinado em Muro”. — Mas isso é impossível, repliquei — ontem ainda recebi uma carta de Muro e nada consta lá de um tal acontecimento”. Geraldo insistiu: “Não há dúvida nenhuma, meu caro conterrâneo, é assim mesmo como vos digo”. 
E de fato o primeiro correio trouxe-me a notícia da funesta tragédia; percebi que Geraldo recebera comunicação do céu sobre o fato. 

Dois ou três dias antes, a 11 ou 12 de outubro de 1754, achando-se o santo no recreio, exclamou de repente: “O nosso Padre Latessa acaba de entrar no céu”. O Pe. Angelo Latessa, digno filho de Santo Afonso, falecera em Caposele a 5 de outubro, no oitavo dia da sua morte Geraldo viu sua alma purificada chegar à visão de Deus. 

Geraldo pretendia passar despercebido e desconhecido em Nápoles, mas não o conseguiu. Os seus dotes naturais e seus carismas sobrenaturais atraíam sempre mais as vistas de todos e conquistaram-lhe em todos os lados amigos e veneradores. 

Em suas visitas a diversos conventos de Nápoles o Pe. Margotta levava consigo o Irmão Geraldo. Muitas vezes uma única palavra de seus lábios bastava para chamar a atenção de todos, como sucedeu cm os Pios Operários, oratorianos e jesuítas. Entre estes destacou-se sobretudo o Pe. Francisco Pepe, homem de grande ilustração e santidade, que se encheu de admiração pelo santo, com o qual se entretinha, horas e horas, sobre assuntos da via espiritual. 

O Pe. Pepe recebera do Papa Bento XIV plenos poderes para conceder certas indulgências aos fiéis. Desejando usar retamente dessa faculdade para o bem de pessoas dignas, encarregou Geraldo de auxiliá-lo distribuindo prudentemente certo número de indulgências. Geraldo podia concedê-las a quem freqüentasse a santa Comunhão, visitasse diariamente o SS. Sacramento, prestasse culto a Nossa Senhora visitando suas imagens ou jejuando aos sábados. Usando essas faculdades concedia também aos sacerdotes o altar privilegiado. 

O que mais admiravam em nosso santo era a sua assombrosa sabedoria. Em toda a parte ficavam pasmos ao ouvir esse simples irmão leigo falar com a precisão de um professor de teologia sobre os mais sublimes mistérios da fé. Como é natural pessoas menos bem intencionadas procuravam pôr à prova essa sabedoria do santo, que entretanto sempre se saía bem, confundindo muitas vezes os corações maldosos. 

“Durante a minha estada em Nápoles, conta o Pe. Celestino de Robertis, foi ter conosco um sacerdote que se estava especializando no tratado da SS. Trindade; começou com o irmão uma palestra sobre esse assunto. Propôs os pontos mais difíceis, como a geração do Verbo, a igualdade dele com o Pai, a processão do Espírito Santo etc. Geraldo respondeu a tudo qual primoroso e abalizado teólogo. 

Eu fiquei assombrado pelo modo com que refutava todas as objeções bem como pela facilidade e clareza com que se exprimia; o irmão não se embaraçou nem uma vez, pelo contrário, o sacerdote é que se viu em apuros para se sair da rede complicada que tramou”. 

Aos poucos tornou-se Geraldo o assunto das palestras das almas piedosas, e não tardou a ser procurado por pessoas de todas as condições. Uns iam ter com ele por curiosidade, outros em procura de conselhos; não poucos abriram-lhe os seus corações pedindo os auxiliasse a fazer uma boa confissão. 

Também senhoras distintas e fidalgas abordaram-no nas questões das suas almas; o santo era visto ora num ora noutro palacete sendo sempre acolhido com acatamento e consultado como confessor. O irmão furtava-se geralmente a esses convites, porém às vezes havia circunstâncias e atenções a que ele não podia esquivar-se. 

Achava-se o santo sozinho em casa, quando se apresentou um senhor muito bem trajado dizendo que sua patroa, dama da alta nobreza, pedia a visita de Geraldo. Este logo notou que o empregado não o conhecia e julgou poder facilmente furtar-se à visita. Sorriu com ar de desprezo dizendo: “Não compreendo porque procuram tanto esse irmão; ele é um tolo, meio louco”. Com essas palavras despachou o empregado que referiu fielmente à dama o que ouvira do porteiro. 

Das circunstâncias percebeu a senhora que o porteiro não era outro senão o santo. Como ela desejava recomendar-lhe sua filhinha gravemente enferma dirigiu-se no dia seguinte, de manhã, à igreja do Espírito Santo que Geraldo costumava freqüentar. Ela estava já na igreja, quando Geraldo chegou; correu a seu encontro e conjurou-o a que curasse sua filhinha. O santo volveu seus olhos ao tabernáculo e apontando-o disse-lhe: “É aquele, e não eu, que distribui as graças!” “Sim, mas é por vosso intermédio que devo receber essa graça” respondeu com confiança a aflita mãe. Geraldo prometeu orar pela enferma. A senhora permaneceu ainda algum tempo rezando na igreja. 

Não tardou muito, apareceu a dama de honra anunciando que a doença da menina cessara repentinamente e que a pequena estava completamente sã. A cura coincidiu com o momento em que Geraldo prometeu orar pela enferma. 
Margotta entretanto chegou à conclusão de que seria melhor não prolongar por mais tempo a estada de Geraldo em Nápoles; não havia já descanso nem tranqüilidade em casa; além disso não queria expor o bom irmão à tentação da vaidade. Pediu a Santo Afonso chamasse de Nápoles a Geraldo ao menos por algum tempo. O santo fundador, acedendo a esse pedido, mandou  Geraldo à casa de Caposele. 

O santo jubilou com essa transferência; humilde como era, julgava-se incapaz para tudo e desejava a solidão. Pouco antes da sua partida da capital desabafou-se em uma carta a Ripacandida: “Ó meu Deus, estou perdendo tempo! que infelicidade, perco tantos momentos, horas e dias e não sei tirar proveito deles! quanta perda! Deus me perdoe... Mas agora eu me retiro para agradar a Deus; pedir-lhe-ei que me prenda de tal modo que não possa mais sair de casa; espero que Ele me atenda”. 

Essa esperança realizou-se, porém só em parte, como veremos. 
Em princípios de novembro de 1754 Geraldo deixou a cidade de Nápoles, onde passara mais de três meses, para se dirigir à sua nova residência de Caposele.   

quinta-feira, 7 de março de 2013

A melhor oração consiste, em alguém ser tal qual Deus o quer, em cumprir sem reserva a vontade divina e em esforçar-se sempre para chegar a Deus.


 A VIDA PRODIGIOSA DE SÃO GERALDO MAGELA

 
 CAPÍTULO XVIII 

Semanas felizes em Caposele 

Em fins de junho — numa sexta-feira — chegou Geraldo com o Pe. Giovenale em Caposele. Sentiu um novo alento com a permissão de poder novamente aproximar-se da mesa da comunhão. Por essa ocasião o Senhor glorificou seu humilde servo com um milagre que — no dizer de uma testemunha fidedigna — se repetira várias vezes em Iliceto. Queremos relatá-lo com as palavras do Pe. Landi.

“Sábado à tarde Geraldo pediu ao Pe. Giovenale permissão de passar em recolhimento o dia seguinte até a hora da comunhão, o que lhe foi concedido. No domingo o superior, precisando dele, mandou-o chamar. Foram a sua cela e não o encontraram, procuraram-no em todos os cantos da casa, porém em vão. Voltaram novamente à cela do irmão: a cama estava feita, o barrete noturno intato, em parte alguma vestígio de Geraldo. Entretanto chegara Nicolau Santorelli, médico da casa ao qual o Pe. Giovenale disse: “Sabeis já que perdemos o Irmão Geraldo?
— Como, perdido o Irmão? mandai procurá-lo — Já o procuraram, porém sem resultado — Quem sabe, ele se escondeu debaixo da cama — Mandei já examinar toda a cela; lá ele não está — Pois bem, disse o médico, eu mesmo irei procurá-lo — e saiu com o Irmão Nicolau. As novas pesquisas não foram mais felizes do que as primeiras.

 “Não importa, disse Santorelli, na hora da comunhão ele sairá do seu esconderijo”. E de fato. No momento da comunhão Geraldo apareceu no corredor; chamaram-no e o levaram ao Pe. Giovenale que se achava junto com Santorelli ao pátio perto da cisterna. O reitor censurou o seu inexplicável desaparecimento e quis saber onde ele se achara todo aquele tempo. “Em minha cela”, respondeu Geraldo inocentemente. “Como, na cela? e eu vos mandei procurar por todos os irmãos e nenhum vos encontrou. Fazei já dez cruzes com a língua no chão”. Geraldo obedeceu e cumpriu a penitência. “Eu deveria agora proibir-vos, continuou Giovenale, a santa comunhão por um mês inteiro, e mandar-vos jejuar a pão e água”. — “Ó meu padre, replicou Geraldo a sorrir, fazei-o pelo amor de Deus”.

“Quando lhe mandaram explicar o caso, continuou Landi, confessou ter pedido ao Senhor que o fizesse invisível, para não ser perturbado na preparação para a comunhão; essa graça ele alcançou pela intercessão da SS. Virgem. O Pe. Giovenale interrompeu-o dizendo: ‘Por esta vez perdoo-vos, mas cuidado, para não fazerdes semelhantes pedidos no futuro’.

De caminho para a igreja Geraldo encontrou o Dr. Santorelli e disse-lhe: ‘Sabeis que me é novamente permitido comungar?’ Foram ambos à sacristia e o doutor perguntou-lhe: ‘Geraldo, falai-me a verdade; onde é que estivestes? Como podeis afirmar terdes estado na cela, quando eu e o Irmão Nicolau a examinamos em todos os cantos e vos não achamos?’ A estas palavras Geraldo tomou o doutor pelo braço, levou-o à cela e mostrou-lhe o lugar, onde estivera sentado numa pequena cadeira junto à porta. ‘Mas nós vos procuramos em toda parte e vos não encontramos’. ‘Sim, replicou Geraldo sorrindo, às vezes eu me faço muito pequenino’.”

Esse acontecimento impressionou tanto a nós crianças, conta o neto do doutor, Miguel Santorelli, que, quando queríamos brincar de esconder, dizia-mos: “Vamos brincar de Irmão Geraldo”.
Mal chegara o nosso santo a Caposele, foi esclarecido o seu caso com a manifestação solene da sua inocência. Neria Caggiano, a caluniadora, adoecendo gravemente, ralada de remorsos, resolveu reparar o mal causado a Geraldo  participou tudo a seu confessor rogando-lhe escrevesse uma nova carta a Santo Afonso desfazendo a calúnia; arrependida declarou, haver por sugestão diabólica, inventado aquele crime que o irmão nem sonhara em cometer.

É fácil compreender a alegria do santo fundador com essa comunicação; nada poderia causar-lhe maior consolação. Exultou como Jacó ao encontrar em honras o seu filho. A alegria pela revelação da virtude ilibada do irmão foi geral e forte. Só Geraldo não se impressionou. “Ele que se não abatera com a calúnia, escreve Tannoia, não se mostrou triunfante com a gloriosa justificação”.

Santo Afonso, ao rever o santo, recebeu-o com ternura paternal, que há tanto tempo lhe havia recusado. “Mas, meu filho, disse-lhe entre outras coisas, porque não dissestes nem uma palavra em vossa justificação? — Mas como poderia eu fazê-lo, replicou Geraldo, se a Regra proíbe desculpar-nos, e quer que suportemos calados todas as humilhações?” Profundamente comovido por essa quase excessiva observância regular, Afonso só pôde dizer: “Bem, bem, meu filho, ide-vos e Deus vos abençoe”. Em outra ocasião perguntou-lhe: “Deveis ter ficado muito triste com a proibição da comunhão?” “Nunca, meu Pai, foi a resposta, se Deus não quis vir a mim, porque devia eu ficar sentido?”

Virtude tão pura agradou sumamente a Santo Afonso, que se encheu de admiração por ele. “Geraldo, disse uma vez ao Pe. Cimino, é um prodígio de observância regular; deu-me disso a prova mais irrefragável; edifiquei-me ao perceber o alto grau de perfeição a que esse irmão atingiu”.

Semelhantemente externou-se ao Pe. Margotta. Ao elogiar este, um dia as virtudes de Geraldo, o seu dom taumaturgo, o seu zelo, sua admirável inocência e incansável tendência à perfeição, disse Afonso. “Mesmo que ele não houvesse manifestado, de outras formas, a sua virtude, bastar-me-ia a sua conduta nesta última provação”.

A veneração do santo fundador ao humilde irmão, confirmada por esse acontecimento, continuou imperturbada no futuro; ainda em seus últimos instantes de agonia lembrou-se Afonso de seu filho fiel e invocou a sua intercessão.
Voltemos ao nosso santo em Caposele. Embora a sua estada lá fosse de apenas poucas semanas, de fins de junho a fins de julho, deixou de si indelével recordação.

A respeito da sua ciência sobre coisas ocultas relata Tannoia o exemplo seguinte. O Pe. Giovenale estava a ouvir confissões, quando Geraldo, ao passar, lançou um olhar triste para o confessionário. Encontrando-se depois com o padre disse-lhe: “A confissão desse homem foi mal feita; procurai ganhar essa alma para Deus”. O padre chamou novamente o homem e encontrou-o carregado de sacrilégios e outros pecados; preparou-o para uma boa confissão a fim de repô-lo no estado de graça.

O Pe. Giovenale experimentou em si próprio a luz sobrenatural de Geraldo. Esse sacerdote sentindo-se uma vez angustiado pelo pensamento de não se achar em estado de graça viu Geraldo que se aproximava para confessar-se. Após a confissão disse o irmão: “Meu pai, ficai tranqüilo, estais na graça de Deus. É o demônio que vos perturba”. Giovenale ficou surpreendido mas contente com essa manifestação; repreendeu todavia bruscamente o irmão: “Sois um louco, disse, e não sabeis o que falais”. Deu-lhe uma penitência e mandou-o retirar-se. Geraldo conhecera a alma do seu superior.

Nessa mesma ocasião o já citado cônego Rossi constatou o fato de Geraldo conhecer coisas distantes. Rossi achava-se em Caposele, onde foi fazer o seu retiro, quando de Melfi, sua cidade natal, lhe chegou uma notícia, que o obrigou a mandar depressa para lá um   portador. O cônego inquietou-se muito com a demora da volta do portador, não manifestando, porém, a pessoa alguma essa sua inquietação. Achava-se ele no fundo do jardim, quando viu o irmão aproximar-se com rosto alegre dizendo: “Senhor cônego, sossegai porque em Melfi tudo correu muito bem”. À chegada do portador, Rossi convenceu-se da verdade das palavras do irmão.

Recordação preciosa da estada de Geraldo em Caposele é a seguinte anotação escrita que nos revela toda a alma do santo e merece, por isso, ser mencionada em sua íntegra. Devemo-la à filial obediência de Geraldo ao Pe. Giovenale que, sob o pretexto de conhecer e provar a sua alma, lhe mandou escrever quanto possível todos os seus desejos, aspirações e propósitos.

Geraldo começa com seu desejo habitual: “A graça divina esteja sempre em nossos corações e a SS. Virgem nô-la conserve sempre. Amém.
Meu Pai, quereis saber todas as mortificações que costumo fazer e exigis que vos escreva os piedosos desejos, aspirações e propósitos, que me prendem o coração, e enfim que explique exatamente o voto que fiz de executar sempre o mais perfeito”.
A essa introdução segue uma relação edificante das duras mortificações, que o santo jovem praticava regularmente.

Mortificações diárias. “Tomo disciplina (flagelação) uma vez por dia - Levo à cintura uma corrente de um palmo de largura e dois de comprimento - De noite e de manhã, ao deitar e ao levantar, faço com a língua nove cruzes no chão - Num dos pratos ao almoçar e ao jantar misturo losna ou wermut - Sobre o peito uso um coração com pontas de ferro - Ao menos três vezes ao dia mastigo losna ou absinto - Rezo com o rosto em terra seis Ave-Marias de manhã e outras tantas à noite”.
“Às quartas, sextas e sábados, bem como nas vigílias, como de joelhos - ao meio-dia e à tarde faço com a língua nove cruzes no chão na sala de jantar, e em todos esses dias deixo passar as frutas”.

“Às sextas-feiras tomo ao meio dia, duas qualidades de comida e à tarde, apenas uma. Sábado jejuo a pão e água”.
Quartas, sextas e sábados coloco, ao dormir, uma cadeia ao redor da fronte, outra em uma das pernas, e no outro lado uma maior da largura de um palmo e do comprimento de três, que de dia me serve de cinta; além disso uso uma corrente no braço dia e noite.

De oito em oito dias flagelo-me até ao sangue.
Em todas as novenas de Nosso Senhor, da SS. Virgem e de outros santos faço cada dia, além das penitências mencionadas, a disciplina costumada e num dia a flagelação cruenta; além disso acrescento outros exercícios extraordinários para os quais peço permissão a V. Revma. de caso em caso”.

À lista das mortificações faz Geraldo seguir a dos desejos de seu coração, bem como dos pensamentos arrebatadores, que denomina. “Os mais vivos sentimentos do meu coração”.

Desejos: - Amar a Deus ardentemente - estar sempre unido a Deus - fazer tudo por Deus - amar a todos em Deus - conformar-me sempre com a vontade divina - sofrer muito por amor de Deus.

Os mais vivos sentimentos do meu coração: Tenho a bela sorte de me santificar; se a deixar passar, perde-la-ei para sempre. Se tenho ocasião de me santificar, que é que me impede de realizá-lo? Tenho todas e as melhores ocasiões de santificar-me. - Sim, quero ser santo. Mas que é isso: quero ser santo? Ah, Senhor, quão grande é a minha loucura! eu devo ser santo; outros oferecem-me os meios para isso e eu me queixo!

Irmão Geraldo, resolve entregar-te inteiramente a Deus. Convence-te e lembra-te que somente com orações e meditações ainda não és santo! A melhor oração consiste, em alguém ser tal qual Deus o quer, em cumprir sem reserva a vontade divina e em esforçar-se sempre para chegar a Deus. Isso quer o Senhor de ti - não deves servir nem a ti nem ao mundo - Basta ter a Deus presente e estar sempre unido a ele - Fazer por amor de Deus tudo o que se faz, isso é oração. Uns têm este trabalho, outros aquele, eu tenho o meu que é: cumprir a vontade divina. Todo o trabalho deixa de o ser quando alguém se cansa de Deus.

Em 21 de setembro de 1752 reconheci melhor estas verdades: Se tivesse morrido dez anos antes, não desejaria nem procuraria agora coisa alguma - Sofrer e sem ser para Deus é um tormento, sofrer tudo por Deus, não é sofrimento - Neste mundo quero viver e trabalhar, como se só Deus e eu nele vivêssemos. Muitos dizem que eu iludo o mundo. Mas que seria se eu quisesse enganar o mundo? Muito mais triste seria querer enganar a Deus”.
Esses pensamentos ocasionam-lhe uma séria consideração, seguida de alguns propósitos entrelaçados de orações e de uma série de resoluções detalhadas.

Consideração: Se eu me perder, perderei a Deus e que me restará então? - Senhor, fazei que tenha no coração uma fé viva no SS. Sacramento do altar.

Propósitos: Meu Senhor Jesus Cristo, eis-me empunhando a pena para exarar os propósitos, que já tinha feito a vossa divina Majestade e que agora renovo, como o exige a obediência. Apraza-nos, Senhor, conceder-me a graça de executá-los fielmente como vô-lo prometo novamente. Não posso confiar em mim mesmo, sou incapaz de agir de acordo com as minhas promessas; confio somente em vós, que sois a bondade e a misericórdia infinita e não podeis deixar de cumprir as vossas promessas. Ó bondade santíssima, se pequei, foi por haver confiado demais em mim; de hoje em diante quero que vós opereis em mim. Senhor, dai que execute tudo isso com pontualidade - Espero-o de vós, inesgotável tesouro meu, Amém!  
“Escolho o divino Espírito Santo por meu único consolador e protetor em tudo. Seja ele o meu defensor, o vencedor de todas as minhas faltas. Amém!

“E vós, minha única jóia, Imaculada Virgem Maria, sede o meu presídio e conforto em todas as fases da vida, e minha intercessora junto de Deus, para que eu execute todos os meus propósitos”.
“Também a vós me volvo, espíritos bem-aventurados, e peço que assistais como advogados junto de Deus criador do universo. Escrevo estas linhas em vossa presença; lede-as do alto céu e intercedei por mim para que cumpra com fidelidade. Em vossa presença faço minhas promessas ao Bem supremo e a SS. Virgem Maria. Com seu especial auxílio e proteção valham-me sempre Santa Teresa, Santa Madalena de Pazzi, Santa Catarina de Sena e Santa Inês”.

“De quinze em quinze dias examinarei a consciência para ver se não faltei aos propósitos escritos.
Geraldo — que fazes? — Sabes bem que um dia te será apresentado o que escreveste? Cuidado pois para observares tudo! — Mas quem és tu que me fazes tais admoestações? Certamente falas verdade, mas não sabes que não confio em mim, não me atrevo nem me atreverei jamais a isso; depois que conheci minha miséria, receio muito confiar em mim. Só em Deus confio e espero; em suas mãos coloquei a minha vida, para que dela faça o que lhe aprouver. Eu vivi, mas já não sou eu que vivo; Deus é minha vida; nele acho minha fortaleza, e dele espero auxílio para de fato cumprir o que lhe prometo neste momento. Vivam Jesus e Maria”.

Resoluções
1. Ó meu caríssimo e único amor, verdadeiro Deus, hoje e sempre entrego-me ao vosso beneplácito. Em todas as tentações e tribulações deste mundo direi: Faça-se a vossa vontade! Abraçarei de coração tudo o que me ordenardes e, erguendo sempre meus olhos ao céu, adorarei vossas divinas mãos, que espalham sobre mim as jóias preciosas da vontade di-vina.
2. Meu Senhor Jesus Cristo, quero fazer tudo o que manda a Igreja Católica, minha santa mãe.
3. Meu Deus, por amor de vós obedecerei a meus superiores, como se vos visse diante de mim e vos obedecesse a vós em pessoa. Viverei como se eu já não fosse “eu” mesmo, conformando-me inteiramente aos juízos e vontade dos que me governam, na certeza de nos encontrar neles.
4. Quero ser pobre, muito pobre quanto aos prazeres e satisfação da vontade própria, e rico em incômodos de toda sorte.
5. Entre todas as virtudes, em que vos comprazeis, meu Deus, gosto mais da santa pureza e castidade. Ó pureza infinita, com firme confiança espero que me haveis de livrar de todo pensamento impuro, que eu, miserável, pudesse ter.
6. Só falarei em três casos; se o falar servir para a maior glória de Deus; se for útil ao próximo; se minha própria necessidade o exigir.  
7. No recreio só falarei quando apostrofado e nos casos acima.
8. Para cada palavra que eu for tentado a falar contra o beneplácito divino, prestarei reparação com a jaculatória: Meu Jesus, eu vos amo de todo o meu coração.
9. Nunca falarei nem bem nem mal de mim mesmo; procederei como se eu não fosse deste mundo.
10. Nunca me desculparei, mesmo que tivesse motivos para isso, a não ser que daquilo que dizem de mim pudesse originar-se ofensa a Deus ou prejuízo ao próximo.
11. Serei inimigo de toda esquisitice.
12. Nunca direi palavras quando censurado ou repreendido, a não ser que o exijam de mim.
13. Nunca acusarei a ninguém, nem falarei dos defeitos alheios nem por gracejo.
14. Procurarei escusar sempre o próximo, considerando nele a pessoa do próprio Jesus a quem os judeus acusaram injustamente — e isso nomeadamente na ausência do acusado.
15. Se alguém — mesmo que seja o reitor-mor — falar mal de outrem, chamar-lhe-ei a atenção.
16. Fugirei com cuidado de tudo o que possa impacientar o próximo.
17. Observando qualquer falta, tomarei cuidado em não repreender o culpado na presença de outrem; fa-lo-ei a sós com toda caridade e em voz baixa.  
18. Percebendo que algum padre ou irmão precisa de meu auxílio, deixarei tudo para o servir, se a obediência a isso não se opuser.
19. Visitarei os enfermos mais vezes durante o dia, se me for permitido.
20. Não me intrometerei nos negócios alheios, nem criticarei quando algum se desempenhar mal dos seus serviços.
21. Em todas as ocasiões, em que eu prestar auxílio aos outros em seus trabalhos, ser-lhes-ei obediente. Se me mandarem fazer alguma coisa, nunca direi: “Isso não é bom, isso não me agrada”. Vendo que a coisa melhor se faria de outro modo, di-lo-ei sem ares de mestre.
22. Em tudo o que eu fizer junto com outros, mesmo em coisas pequenas e insignificantes, como varrer a casa, carregar um peso etc., nunca me escolherei o primeiro lugar, posição mais cômoda, as melhores ferramentas; deixarei isso aos outros e contentar-me-ei com o que Deus me manda; assim os outros e eu ficaremos contentes.
23. Nunca me oferecerei para algum cargo ou coisa semelhante, a não ser que outros me peçam.
24. Durante a mesa não volverei os olhos para todos os lados, a não ser que esteja a isso obrigado pelo serviço ou caridade.
25. Do tabuleiro (em que se servem os pratos) tirarei sempre a porção mais próxima, sem olhar para as outras.  
26. Em todos os movimentos internos, contrários à razão, cuidarei em não lhes dar ouvido. Se for repreendido ou acusado deixarei passar o primeiro ímpeto, esperando restabelecimento da tranqüilidade.
27. Meu propósito principal é dar-me todo a Deus. Terei sempre ante os olhos as três palavras: surdo, cego, mudo.
28. As palavras “quero” e “não quero” sempre me serão estranhas; só quero, Senhor, que em mim se cumpram os vossos desejos e não os meus.
29. Para fazer a vontade de Deus, devo renunciar à minha. Só a Deus é que eu quero; se eu quero só a Deus, é justo que me separe de tudo, que não é Deus.
30. Cuidarei em não procurar a mim mesmo em coisa alguma.
31. Durante todo o tempo do silêncio menor, procurarei lembrar-me da Paixão e Morte de Jesus e das Dores da SS. Virgem Maria.
32. Todas as minhas orações, comunhões etc., devem reverter em bem dos pecadores, para os quais os oferecerei em união com o sangue preciosíssimo de Jesus.
33. Se alguém não podendo suportar as dores que Deus lhe manda, vier ter comigo, ou se isso chegar aos meus ouvidos, pedirei ao Senhor por ele e oferecerei todas as boas obras durante o dia para que Deus lhe conceda a conformidade com a sua vontade.  
34. Ao pedir a bênção ao superior imaginar-me-ei que a recebo do próprio Jesus Cristo.
35. Só em caso de necessidade pedirei à noite a permissão de comungar no dia seguinte, do contrário fa-lo-ei na véspera de manhã para ter mais tempo de preparar-me. Se esta me for negada, comungarei espiritualmente à comunhão do celebrante.
36. A ação de graças durará até meio-dia, e a preparação para a comunhão do dia seguinte de meio-dia até à noite”.

A esses propósitos pormenorizados acrescenta o irmão consciencioso alguns atos que usava recitar na visita ao SS. Sacramento e nas súplicas do divino amor.

Atos para a visita do SS. Sacramento: Meu Senhor, creio que estais presente no SS. Sacramento, adoro-vos de todo o meu coração, e tenho a intenção de vos adorar, por esta visita, em todos os lugares da terra onde vos achais sacramentado. Ofereço-vos o vosso precioso sangue por todos os pecadores. Desejo receber-vos espiritualmente tantas vezes, quantos há lugares em que residis sacramentalmente.

Atos de amor: Meu Deus, desejo fazer tantos atos de amor, quantos foram os da SS. Virgem e os de todos os espíritos celestiais desde o primeiro instante da sua existência e quantos são os de todos os fiéis do mundo. Desejo amar-vos com o amor com que Jesus vos ama a vós e aos eleitos e desejo repetir sempre esses atos de amor. Semelhantes afetos tenciono fazer para com a SS. Virgem”.
Geraldo acrescenta ainda um propósito que revela a sua fé viva. É o seguinte: “De hoje em diante quero tratar o sacerdote com todo o respeito, com a reverência devida à pessoa de Jesus; nunca perderei de vista a sua alta dignidade”.
Segue a explicação do voto de fazer sempre o mais perfeito. O santo continua.

Explicação de meu voto: Obriguei-me a fazer sempre o mais perfeito, isto é, o que me parecer mais perfeito diante de Deus. Isso estende-se a todas as minhas ações, por mais insignificantes que sejam; comprometo-me a executá-las com abnegação e perfeição. Suponho a permissão geral de V. Revma. para proceder com segurança”.

Limitações desse voto:
1.º - As ações que puser distraidamente, sem me lembrar serem contra o voto, eu as excluo.
2.º - Fora de casa serei livre em pedir dispensa dele a qualquer um.
Essa reserva eu a faço para evitar escrúpulos, que me seriam prejudiciais. Reservo-me o direito de pedir ao meu confessor desligamento desse voto, o que ele poderá fazer quando quiser”.
Enfim o servo de Deus aduz uma série de observações referentes à devoção, patenteia-nos seu coração inflamado de zelo e termina sua relação com um propósito, que nada tem de extraordinário, mas que prova a sua fidelidade até nas coisas mais insignificantes.

Devoção à SS. Trindade: Sempre que eu vir a cruz ou a imagens da SS. Trindade, ou que ouvir falar desse mistério, bom como no princípio e no fim de cada trabalho rezarei um Gloria Patri com toda a devoção.

Em louvor da SS. Virgem: Farei o mesmo para com a SS. Virgem; rezarei em honra da pureza de Maria Santíssima uma Ave-Maria sempre que se me  olhar uma pessoa do outro sexo.

Em louvor dos santos padroeiros: São eles São Miguel Arcanjo e todos os anjos, São Joaquim e Sant’Ana, São João Batista, Santa Izabel, São João Evangelista, o santo padroeiro do dia, do mês e do ano, o santo do dia em que nasci bem como o santo do dia em que vou morrer, São Francisco Xavier, Santa Tereza, Santa Maria Madalena de Pazzi, São Felipe Neri, São Nicolau de Bari, São Vicente Ferrer, São Bernardo, São Boaventura, Santo Tomás de Aquino, São Francisco de Assis, São Francisco de Salles, São Francisco de Paula, São Félix de Cantalício, São Pascoal Baylon, São Vito, São Luiz de Gonzaga, Santa Maria Madalena, Santa Catarina de Sena, Santa Inês, São Pedro e São Paulo, São Tiago e a venerável Irmã Maria Crucifixa”.

Antes e depois das refeições: Três Gloria Patri à SS. Trindade e três Ave-Marias à SS. Virgem; ao tomar pão ou vinho um Gloria Patri; ao tomar água e ao beber do relógio uma Ave-Maria.

Afeto: Ó meu Deus, oxalá pudesse eu converter tantos pecadores quantos são os grãos de areia na terra e no mar, folhas nas árvores, talos nos campos, átomos nos ares, raios de luz no sol e lua, e criaturas no universo.
Ao levantar e deitar farei os agradecimentos usuais na comunidade e depois os atos da santa comunhão; farei ao meio-dia e à noite o exame de consciência com o ato de contrição.
Vivam Jesus, Maria, São Miguel, Santa Tereza, Santa Maria Madalena de Pazzi e São Luiz”.
Essa era a regra que o santo se propusera observar. Na simplicidade da sua elaboração não desaparece a grandeza de espírito que a inspirou.  

sexta-feira, 1 de março de 2013

Parece que o entretenimento com Deus desta vez se tornou mais íntimo, gozando sua alma alegrias maiores e mais profundas.


A VIDA PRODIGIOSA DE SÃO GERALDO MAGELA


 CAPÍTULO XVII 

Dias procelosos 

Se o ano de 1753 proporcionou honra e glória ao nosso santo, o seguinte deu a prova cabal de que era digno desse acatamento e respeito, porquanto a sua virtude não era metal sem valor, que brilha, mas ouro puríssimo e precioso.
A Providência quis fazê-lo passar por uma dessas provações que não são raras na vida dos grandes santos, e que só eles sabem suportar com tranqüilidade e firmeza.

Nos dias da páscoa desencadeou-se sobre ele a tempestade. Durante a quaresma estava Geraldo a serviço da Congregação em Atella, onde travou conhecimento com o Cônego Camillo Bozzio, que lá pregava os sermões quaresmais.
O encontro de Geraldo com Bozzio foi um dos acontecimentos mais alegres da vida do santo nesse ano, de sorte que não podemos furtar-nos ao desejo de reproduzi-lo com as próprias palavras do cônego.

“Tive ocasião, escreve esse sacerdote, de me entreter familiarmente com o Pe. Cafaro, de feliz memória, sobre Geraldo e ouvi de seus lábios muitos rasgos da virtude e santidade desse irmão, que era seu penitente. Ventura de me encontrar pessoalmen-te com ele, só tive em 1754 em Atella, aonde ele fôra a serviço da Congregação e onde eu estava pregando os sermões quaresmais... Desde esse tempo formou-se entre nós uma amizade íntima, que, resultante de motivos sobrenaturais, teve o seu complemento no amor de Cristo”.

Essa amizade não foi fruto de uma impressão passageira causada pelo bom irmão, mas o resultado de maduro exame da sua virtude. “Vi Geraldo, diz Bozzio, na sacristia da igreja, onde ele palestrava com diversos sacerdotes sobre assuntos religiosos. Aproximei-me e comecei a provocá-lo com estas palavras de pouco caso: Que prosa fiada é essa? Não passais de um ignorante irmão leigo e quereis bancar o teólogo? Não compreendo como esses senhores perdem seu tempo a ouvir-vos; eles enganam-se muito, fazendo de vós tão alto conceito — eu tenho-vos na conta de um indivíduo vaidoso, a meu ver não passais de um hipócrita e mais nada!

Essa apóstrofe inesperada, esses insultos sem fundamento não conseguiram banir a alegria do semblante do bom irmão, nem perturbar-lhe a paz da sua alma; sorriu modestamente, abraçou-me manifestando seu inteiro contentamento. “Tendes razão, disse ele desculpando meu estranho modo de falar, tendes razão, eu sou um pobre ignorante e preciso que peçais a Deus por mim. Perdoai-me”.

Esse fato bastava para encher a Bozzio de admiração para com o santo; o cônego porém teve ainda muitas outras ocasiões de perceber nele características de extraordinária santidade. Entrou uma vez inesperadamente no quarto de Geraldo que se hospedara, como ele, em casa de Grazioli, cujas duas filhas o santo irmão levara para o mosteiro de Ripacandida. Ao abrir a porta o cônego viu Geraldo em profundo êxtase elevado nos ares.

“Outro dia, continua Bozzio, notei que sua alma se achava presa de emoções, de tristeza extraordinária. Perguntei-lhe se não havia comungado pela manhã; confessou não o haver feito por sentir sua consciência perturbada. Essa perturbação era apenas efeito da sua humildade. Ao entrar ele, à tarde, em meu quarto, percebi logo que o desejo da comunhão o atormentava; procurava distrair-se afastando a saudade que lhe enchia o coração. Para esse fim saímos a passeio e cantamos algumas estrofes de Jeremias; tudo foi em vão. Levei-o à matriz principal, onde de portas fechadas, cantamos com acompanhamento do órgão, que Geraldo sabia bem tocar, o hino (composto por Santo Afonso) que começa com as palavras: Fiori felici, voi che notte e giorno...

A minha voz era como a do órgão; saía de um interior vazio, de um coração frio; mas a dele jorrava de um peito ferido do amor de Jesus, e deixava transparecer a saudade que o dominava”.

Enquanto Bozzio em Atella se convencia sempre mais, por experiência própria, da santidade de Geraldo, a tempestade preparava-se para cair sobre o servo de Deus. A semana santa passou-a o santo pacificamente em Foggia, onde negócios reclamavam a sua presença. Como de costume entregou-se, nesses dias, à meditação da Sagrada Paixão e à penitência, passando boa parte desse tempo na capela do conservatório do SS. Redentor.

Edificava a todos com sua devoção e hauria dessas profundas meditações a força sobrenatural, da qual em breve teria grande necessidade. Parece que o entretenimento com Deus desta vez se tornou mais íntimo, gozando sua alma alegrias maiores e mais profundas. Ele, que guardava o maior segredo a respeito do seu interior, deixou escapar, em uma carta, esta palavra: “Passei esses dias em indizível contentamento”.

No excesso dessa alegria não terá ele pressentido a hora amarga que se aproximava? Não terá entrevisto nele a cruz pesada que o ameaçava? Não terá percebido nessas doçuras extraordinárias os mensageiros de dores e provações? O certo é que Geraldo estava preparado, quando soou a hora rude da provação, o inimigo não o surpreendeu desarmado.

O instrumento de que o demônio se serviu para causar sofrimento e amarguras ao santo e paralisar sua atividade em prol das almas, foi uma tal Neria Caggiano. Devido aos esforços do santo essa menina entrou no conservatório de Foggia, onde todavia não permaneceu muito tempo. Para justificar a sua saída Neria propalou calúnias contra as religiosas de Foggia, até que, impelida pelo espírito da mentira, se atreveu a expectorar o seu veneno contra o santo. Não lhe foi difícil encontrar pretexto de acusação. Sempre que ia a Lacedogna Geraldo hospedava-se com seu amigo Constantino Capucci, em cuja casa esteve também em princípios de 1754.

Das quatro filhas desse senhor, duas, por intermédio do santo, se internaram no conservatório de Foggia; as outras duas entre as quais Nicoletta, estavam em casa. Ninguém parecia tão vulnerável em ponto de honra como Nicoletta que era geralmente conhecida por sua piedade e virtude ilibada. Neria, a caluniadora, denegriu-lhe a honra declarando-a violentada por sedução vergonhosa de Geraldo.

Às vezes é fácil dar à mentira aparências de verdade, o que aconteceu no caso, chegando a caluniadora a convencer do crime imputado a Geraldo, o seu próprio confessor Benigno Boaventura. Este grande amigo de Santo Afonso e da Congregação, julgou-se obrigado em consciência a levar o caso ao conhecimento do superior de Geraldo, afim que a hipocrisia do irmão não prejudicasse a toda a Congregação; não só obrigou a caluniadora Neria a comunicar o ocorrido ao santo fundador mas também creu-se na necessidade de lhe escrever pessoalmente.

É fácil imaginar-se a impressão dolorosa que essa notícia causou a Santo Afonso. A acusação parecia incrível, mas as razões alegadas eram ao menos no momento, tão convincentes que encobriam completamente a infame mentira. Benigno era digno de toda fé, e acatadíssimo por Santo Afonso.

Entretanto também é certo que o santo fundador não deixou de duvidar da veracidade da acusação, porque, do contrário, teria expulso Geraldo, sem misericórdia, do seio da Congregação. Afonso duvidava, mas para que lado inclinava-se ele em sua dúvida? Não seria Geraldo uma daquelas almas que, depois de atingir um alto grau de perfeição, se tornam vítimas da ilusão de Satanás? Teria o irmão cometido alguma imprudência imperdoável ou dado ocasião que motivasse de algum modo aquela acusação? É difícil sabê-lo, ainda mais porque Afonso impôs a Geraldo penas duríssimas sem lhe declarar expressamente o motivo desses castigos. Se é muito provável que o santo teve de fato dúvidas a respeito da inocência de Geraldo e lhe impôs castigos para obter de seus lábios uma confissão clara, não é infundada a opinião de que ele considerou falsa a acusação e puniu o santo para prová-lo.

Seja como for, Afonso ao receber a carta caluniadora, mandou um sacerdote a Iliceto com ordem de levar a Nocera dei Pagani o irmão denegrido em sua reputação. Este recebeu a ordem com toda a calma, deixou no dia seguinte Iliceto, para onde nunca mais devia voltar e encaminhou-se para o lugar, onde Afonso o esperava com impaciência.

Que triste surpresa para Geraldo ao ouvir aquela acusação! Ele ter cometido uma infâmia que tanto detestava, ter violado vergonhosamente uma virtude que, na sua própria expressão, lhe era a mais bela e a mais querida! “Ó meu Deus — lemos em seus a-pontamentos — entre todas as virtudes do vosso beneplácito, agrada-me mais a pureza e a castidade. Ó pureza infinita, de vós espero, ficar sempre livre do menor pensamento impuro, que me pudesse sobrevir neste mundo”. De ter ele sido infiel a esse sentimento, era acusado e de tal forma que chegou a ser enganado quem conhecia toda a sua vida até aquele momento.

O santo achava-se diante de um difícil problema. Deveria salvar a sua honra atacada, defender sua inocência, amparar o seu bom nome contra mancha tão hedionda; ou calado tomar sobre si a cruz pesada, suportar paciente o ódio, insulto e desprezo dos homens e entregar à Providência a justificação e salvação da sua honra? Para o primeiro tinha muitos e bons motivos, o segundo convinha mais a sua humildade e ao desejo de se conformar com seu divino Redentor; se o primeiro lhe parecia permitido e bom, o último mostrava-se-lhe mais perfeito e heróico.

Lembrado do voto de executar sempre o mais perfeito, resolveu-se Geraldo seguir o último. Apesar de se reconhecer inocente ouviu as acusações sem proferir uma palavra em sua defesa, com toda a calma como se fossem todas reais e ele inteiramente digno de castigo. Por meritório que fosse o silêncio do santo aos olhos de Deus que conhece as dobras dos corações, aos olhos dos homens, nas dadas circunstâncias, tinha a má aparência da ambigüidade; embora não fosse confissão de culpa, não podia ser considerado como defesa da acusação, dando assim motivo fundado para o exame.

Santo Afonso repreendeu o irmão com palavras pesadas, exprimiu com vivacidade o seu pesar e indignação e proibiu-lhe a santa comunhão; igualmente interditou-lhe, sob as mais graves penas, qualquer relação com pessoas de fora, qualquer palestra ou carta.
O humilde irmão curvou a fronte, aceitou tudo em silêncio conservando, nesses momentos tão dolorosos, a jovialidade do seu semblante e a paz da sua alma.

Nem nessa tão difícil situação conseguiu o espírito da crítica e murmuração apoderar-se do seu coração nem causar-lhe aversão ao santo fundador. Ao contrário Geraldo testemunhou-lhe sincero amor, como no-lo atesta um confrade que então com ele privava. Ao encontrar-se com o superior andando pelos corredores de Pagani, Geraldo olhava-o com a humildade e amor de uma criança. Quando Santo Afonso passava por perto dele exclamava: “Meu Pai, tendes o semblante de um anjo! Ao ver-vos sinto-me repleto de consolação”.

Geraldo, apesar da dureza da provação pôde conservar a paz e suportar tranqüilamente esses embates interiores, que o sacudiam, porque, nesses casos e nessas tempestades, não era marinheiro de primeira viagem. E de fato por entre todos os favores com que o céu o favorecia, estendia-se uma longa cadeia de sofrimentos internos. Sendo a sua vida a de um santo, não podia ficar sem espinhos e cruzes.

Já antes da sua entrada na Congregação, eram-lhe familiares os sofrimentos da alma. Estes aumentaram-se com sua entrada para a vida religiosa, como o provam os documentos que temos da sua vida. Além das dores que, às sextas-feiras, faziam dele a imagem da morte pela participação da agonia de Jesus, o bom irmão teve de suportar, embora nem sempre, cruel tormento pelo medo de se poder separar de Deus e de se privar da sua visão no céu.

Isso era conseqüência natural da sua humildade na qual só via a sua indignidade, insuficiência e pecado. Esse tormento crescia na proporção que se aperfeiçoava sua humildade e precipitava-o muitas vezes em um abismo de desânimo e tentações que se sentia sem auxílio, sem esperança, desconsolado e como que aniquilado. De todos os lados assaltavam-no ondas de desespero comprimindo-lhe o coração, que só encontrava então apoio e consolação em sua fé singela e viva.

Nessas angústias Geraldo costumava dirigir-se aos amigos de Deus e pedir-lhes orações; às vezes Deus atendia essas súplicas concedendo algum lenitivo e consolação para a sua alma.
Nos primeiros anos de sua estada em Iliceto, residia lá o venerável clérigo Fr. Domingos Blasucci, a quem Geraldo comunicava os seus segredos por reconhecer o valimento desse jovem piedoso junto de Deus. Um dia o santo foi ter com Blasucci que na palidez do rosto notou logo a dor que acabrunhava o bom irmão. À pergunta de Blasucci pela causa do seu sofrimento, Geraldo respondeu manifestando-lhe com sinceridade as suas indizíveis angústias e suplicando-lhe se dignasse auxiliá-lo nas dores de sua alma. Domingos compadecido fez-lhe sobre o cora-ção o sinal da cruz e os sofrimentos desapareceram como por encanto deixando o irmão consolado e santamente alegre.

Tais consolações extraordinárias não duravam regularmente longo tempo, eram como gotas frescas caídas sobre a língua em fogo de uma pessoa sedenta. As dores voltavam, às vezes ainda mais violentas, prostrando sua alma no incêndio devorador de seus sofrimentos internos.
As cartas de Geraldo testemunham, em diversas passagens, esse estado de sua alma; por vezes descreviam-no com palavras que, embora breves, enchiam os leitores de compaixão e dó.
Assim escreveu, aludindo de leve aos seus sofrimentos, à venerável Irmã Maria de Jesus: “Não vos esqueçais de me recomendar ao Senhor, porquanto o necessito indizivelmente; Deus conhece minhas constantes tribulações”.

Mais claramente fala da grande amargura da sua alma em uma outra carta à mesma religiosa.
“Ó Deus, assim começa, grande satisfação causou-me a recepção dessa nova carta, pela qual tanto suspirava. Digo-vos com verdade e diante de Deus: esse desejo não é meu mas do coração que necessita do auxílio alheio por não se poder valer a si próprio. É vontade de Deus que eu caminhe por entre tormentos e tempestades. Ah! eu também quero que em mim se cumpram, do modo mais perfeito, seus santos desígnios”.
“Estou cheio de pecados, escreve oprimido de dor à Irmã Maria de Jesus, todos convertem-se; só eu permaneço obstinado; fazei penitência por mim, para que Deus me perdoe; peço o mesmo também a todas as vossas filhas”.

Às religiosas de Ripacandida escreve outra vez em maio de 1753: “Pedi ao Senhor, pedi muito por mim que me acho em grandes necessidades espirituais. Só Deus conhece a minha desolação e aflição. Se quiserdes podeis auxiliar-me. Fazei-me esse favor e caridade”.
A natureza e o motivo último de seus sofrimentos ele o declara nas linhas dirigidas à Irmã Maria de Jesus: “Avalio perfeitamente as dores que tendes sofrido, posso porém afiançar-vos que eu as sinto ainda mais no meu coração; não podeis medir-lhes a profundeza nem a enormidade. Dizendo que eu as sinto mais do que vós, não há exagero nas minhas palavras, porque a divina justiça pregou-me na cruz de tal forma que julgo que ninguém pode nela ser cravado mais do que eu. Seja sempre bendita a santíssima vontade de Deus. O que mais me faz tremer e inspira maior espanto é o pensamento de que não conseguirei a perseverança até o fim”.

O martírio desse pensamento perseguiu o irmão até o fim da vida. Como confirmação disso queremos aduzir duas cartas endereçadas pelo santo em 1754 à Irmã Maria de Jesus. Já a epígrafe da primeira é a expressão de um coração aflito e angustiado. “Meu Deus, compadecei-vos de mim”. Geraldo começa: “Venerável irmã, como podeis gracejar comigo? Escrevendo-me dessa forma — vós o sabeis — acrescentais novos tormentos aos que sofro por causa dos meus pecados. Estais alegre, eis porque gracejais. Mas eu — que dizer? Deus assim o quer e folgo com a vossa felicidade. Deus vos conserve nesse feliz estado, a vós a quem ele tanto ama! — Assim são as coisas: enquanto um sobe o outro baixa. Estou tão abatido que julgo não poder mais levantar-me, oprimido por dores eternas. Seja! Isso não me incomoda contanto que eu ame só a Deus e o agrade em tudo; isso basta! Mas eis o motivo das minhas dores: parece-me que sofro sem Deus. Venerável Madre, se me não ajudares, sinto-me ameaçado de um sofrimento maior ainda.

Acho-me num abatimento profundo, num mar de confusão como à beira do desespero. Parece-me que já não há Deus para mim, que cessou a misericórdia divina, para dar lugar tão somente à justiça. Considerai o triste estado em que me acho. Se realmente existe entre nós a santa aliança da fé, é agora o momento de me auxiliardes e pedirdes a Deus por mim. Suplico-vos, tende dó de minha alma; já não tenho coragem de aparecer diante das criaturas”.

A outra missiva datada de Nápoles, foi escrita dez meses antes da morte do santo. A mesma dor pungente, como na outra carta, encontra nesta a expressão dos seus atrozes sofrimentos. É do teor seguinte:
“Jesus e Maria!
Cara e prezada irmã. Escrevo-vos pregado na cruz, e muito às pressas por falta de tempo.  

Compadecei-vos da minha agonia. Pouco tenho para escrever, e se me não esforçasse, nem poderia pegar na pena; as lágrimas não o permitiriam. Meus sofrimentos são tão acerbos que me põem em agonia; quando já me julgo expirar, volta-me outra vez a vida, para mais me torturar. Estou mergulhado em dores; não sei dizer outra coisa; não vos quero comunicar o fel e o veneno, que me molestam, para não vos encher da mesma amargura. Sei que estais feliz, e o vosso contentamento me anima e me faz reviver em Deus. Louvado seja Deus pelos favores a mim concedidos. em vez de me esmagar sob as suas santas pancadas, concede-me sempre nova força para viver; manda-me sofrimentos somente para eu imitar o meu divino Redentor.

Ele é meu mestre e eu seu discípulo. É conveniente que eu dele aprenda e siga os seus vestígios. Mas ah — eu já não ando; sem movimento estou com ele na cruz, abismado em luta e indizíveis dores; é como se uma lança me transpassasse tirando-me a vida; mas parece, de outro lado, que a cruz em que estou pregado, somente me prolonga a vida e os tormentos. Todos — assim penso — abandonaram-me; mas eu que não quero contrariar o plano do meu Redentor que deseja o meu sofrimento com ele sobre a cruz — curvo minha fronte e digo: Já que é essa a vontade de Deus, aceito com alegria tudo o que me quiser impor”.
Do que fica dito se depreende que Geraldo não se achava em vereda desconhecida quando a calúnia inundou de luto e dor a sua alma; e por isso pôde suportá-la com pasmosa tranqüilidade e calma.

Embora justificável, sob o ponto de vista humano, uma exteriorização da dor, uma doce queixa, uma palavra de indignação contra a maldosa mentira, o perfeito imitador de Cristo preferiu calar-se e tragar até às fezes o cálix da amargura.
A desgraça que lhe acontecera e a causa da sua humilhação espalharam-se logo entre os confrades. A impressão porém causada não foi a intencionada pela caluniadora; todos compadeceram-se do santo e ninguém acreditou tivesse ele cometido falta grave.

Alguns padres, que conheciam Geraldo a fundo, foram de opinião que ele se justificasse para, com seu silêncio, não dar aparências de culpado. Mas o humilde irmão não quis saber de justificação própria, “Deus cuidará disso, exclamou o santo; se ele quer a minha humilhação, porque me opor à sua vontade. Se ele quiser manifestar a minha inocência, quem melhor do que ele poderá fazê-lo? Deus faça de mim o que quiser; eu só quero o que ele quer”. Ouviam-no rezar uma vez: “Senhor, a minha causa é também a vossa; se me quiserdes humilhar, sinto-me feliz, porquanto é esse o caminho que trilhastes”.

Geraldo nada fez para fazer cessar os seus sofrimentos, apenas redobrou suas penitências e orações. A visita ao SS. Sacramento era alívio para sua alma e a união das suas dores com as do Redentor o consolo para o seu coração. Passava a noite em oração. Quando o silêncio levava os confrades ao repouso, saía sozinho ao ar fresco da noite; contemplava as estrelas, que da região da paz lhe acenavam com seu brilho parecendo falar-lhe da terna solicitude divina; entre orações, suspiros e lágrimas erguia os braços para o céu. Assim procurava conforto do alto e para suportar as dores, qual flor, que ressequida pelo calor do dia, bebe o orvalho do céu na solidão da noite.

Só após prolongadas orações é que procurou algum descanso, não no leito, mas no esquife em que repousou por longo tempo o corpo do venerável Padre Sportelli.
“As suas humilhações, relata Tannoia, não lhe arrancaram lágrimas, mas ocasionaram-lhe prazer. A natureza rebelava-se, não há dúvida; no embate da dor, desconfiando de suas próprias forças, recomendava-se às orações de outros. Se alguma vez chorava, não era por sua causa, mas pelo estado espiritual da pessoa que o caluniara. Oferecia a Deus as suas penitências, para lhe alcançar luz e graça”.

Dor cruel causou-lhe a proibição da santa comunhão; submeteu-se facilmente à sentença que privava do amor, da estima e do convívio de seus confrades e dos estranhos; mas pareceu-lhe insuportável a proibição que o afastava da santa comunhão.
“Deixai-me por favor — disse a um padre que lhe pedira ajudasse a missa — não me tenteis; eu vos poderia arrancar Jesus das mãos”. Contudo, nem quanto a isso quis ele mitigação da pena, a fim de se conformar inteiramente com a vontade divina. “Basta-me ter Jesus no coração”, disse a um que o procurava consolar. Uma outra vez observou: Deus quis castigar o meu fraco amor e fugiu de mim; mas eu o tenho no meu coração donde não o deixarei sair”.

Uma vez pretenderam induzi-lo a pedir a Santo Afonso permissão para comungar. Geraldo vacilou a princípio, mas não tardou a tomar resolução firme. “Não, disse batendo com a mão na escada em que se achava, não! é preciso morrer sob a prensa da vontade divina”.
Aos amigos de fora causou dolorosa impressão e estranheza o fato de não poderem mais ver o Irmão Geraldo. Não se sabia o que era feito dele; somente alguns ouviam boatos de algum castigo infligido ao irmão. Entre estes estava a Irmã Maria Celeste Crostarosa, que ficou com isso profundamente penalizada ignorando qual pudesse ser a causa do castigo de Geraldo. Supondo que talvez alguma liberdade no exercício de seus piedosos trabalhos pudesse ter sido a causa, escreveu-lhe: “Soubemos pesarosos do vosso sofrimento. É sempre a vossa caridade que vos faz sofrer; desta vez o demônio conseguiu impedir que nos fizésseis uma visita em Foggia. Entretanto nós não cessamos de orar por vós e espero que ele, o demônio, seja ainda confundido. Onde quer que estejamos ou vivamos sempre nos veremos em Deus e juntos amaremos a Jesus nosso único bem, que muito nos ama”.  

Também o Padre Margotta, a quem Geraldo mandara participar o ocorrido, escreveu-lhe a carta seguinte em tom paternal:
“Meu caro Geraldo.
Vossa carta alegrou-me duplamente, primeiro porque nela me prometeis as vossas orações, e segundo porque me comunicais a vossa conformidade com a vontade de Deus quanto ao ocorrido. Desejo-vos todo o bem e o progresso sempre crescente no serviço de Deus; conservai-vos firme em vossa boa vontade de viver sempre no cumprimento do beneplácito divino sob a obediência e submissão completa aos superiores. Em minhas aliás fracas orações, rogo por vós ao Senhor e a nossa mãe Maria, para que vos concedam a força necessária afim de vos conformardes em tudo com a vontade de Deus e executardes todos os vossos piedosos desejos”.

Esses confortos caridosos, vindos dos lábios humanos pouco reanimariam a alma provada de Geraldo, se Deus não corresse em seu auxílio.
“Assunto de suas meditações eram então, como observa Tannoia, os atributos divinos. Nesse oceano mitigava ele a sede devoradora que sentia da santa comunhão. Perguntando-lhe alguém como podia passar sem a comunhão, respondeu: “Delicio-me com a imensidade do meu Deus”. Ao aprofundar-se na contemplação dos atributos divinos ficava absorto em Deus e caía em êxtase, esquecido de si próprio”.

O Padre Cajone, então prefeito dos doentes na casa de Pagani foi, uma tarde, testemunha de um desses arroubos, quando de conformidade com o uso na Congregação, fazia ao irmão doente a santa meditação. “Tomei por assunto, diz Cajone, o amor de Deus para conosco e o direito que tem ao nosso coração. A declaração do tema foi suficiente para pôr Geraldo num estado de completo esquecimento de si próprio. Estava ele deitado de costas, a cabeça recostada à parede e os olhos voltados para o céu. As pálpebras não se moveram durante todo o tempo da meditação. À princípio não supus nada de extraordinário; mas quando, passado o tempo da oração, ele permaneceu na mesma posição apesar do rumor que fiz, notei que ele estava absorto em Deus. Nesse estado ficou ainda algum tempo causando-me profunda admiração”.

Uma outra ocorrência admirável durante essa doença de Geraldo narra-a o Pe. Landi. “Muitos dos nossos padres contaram-me e o nosso reitor-mor (Santo Afonso) pode confirmar a verdade da narração. Achava-se este à mesa na sala de jantar, quando de repente Geraldo, não completamente vestido, entrou e se lhe apresentou. Afonso censurou aquela falta de respeito e perguntou-lhe o motivo porque aparecera dessa forma diante dele. “Eu vim, respondeu Geraldo modestamente, porque V. Revma. me chamou”. O santo demonstrou assim claramente que soubera por vias sobrenaturais o desejo que seu superior tinha de vê-lo e falar-lhe”.

O silêncio inviolável guardado pelo santo deu que pensar. Não era possível chegar a uma clareza completa. Se todos os que admiravam Geraldo, sua virtude e seu espírito reconheciam a calúnia e desejavam dos seus próprios lábios uma defesa clara e aberta, outros julgavam não infundada a acusação. Geraldo — assim diziam — era conhecido e relacionado com todos na casa onde se diz cometido o crime, é pois o caso de se perguntar, se a consciência do irmão não está manchada e se não é bom procurar um homem da sua confiança que lhe possa arrancar a confissão humilde da culpa depois de lhe desfazer a confusão compreensível no caso.

Fazendo justiça também a esse parecer, Afonso mandou o irmão a Ciorani, que era então casa de noviciado para lá refletir com tranqüilidade e liberdade sobre a questão. Cartas ao reitor Pe. Xavier Rossi e ao mestre de noviços Pe. Tannoia recomendavam-lhes observassem atentamente o irmão e seu procedimento até nos menores pontos. A ordem de Afonso foi cumprida à risca como era de esperar desses dois religiosos modelares. “Entretanto, diz Tannoia, nada se notou de censurável nele; era sempre alegre, humilde para com todos e pronto para executar pontualmente as ordens mais insignificantes. O mais admirável é que ele não proferia a mínima palavra a respeito do seu infortúnio. O tempo que restava do trabalho passava-o na igreja diante do SS. Sacramento ou em sua cela no mais perfeito recolhimento”.

Durante os dez ou doze dias, que Geraldo passou em Ciorani, as opiniões a seu respeito começaram a esclarecer-se em Pagani. O procedimento sempre modelar do irmão, no qual nem os mais experimentados e hábeis olhos podiam descobrir coisa alguma que pudesse servir de ponto de apoio para a condenação do acusado, foi para os que até então duvidavam na inocência de Geraldo, um peso considerável na balança do julgamento. Embora ainda não estivesse resolvido o caso, o fiel pendia para a pureza do irmão desmascarando a calúnia infame levantada contra ele.

Apenas regressado de Ciorani a Pagani, Geraldo recebeu ordem de acompanhar a Caposele o Pe. Giovenale que iria substituir o Pe. Mazzini que adoecera. Permitiram ao irmão receber, aos domingos, a santa comunhão, mas não lhe consentiram relacionar-se com estranhos. O Pe. Giovenale foi incumbido de vigiá-lo, humilhá-lo e mortificá-lo.