Trocando de roupa para o Banquete Nupcial

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Caminhada para o Céu

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Até mesmo nesta vida Sua Majestade paga por vias que só quem goza disso o entende. Isto sei-o por experiência, como tenho dito, em muitas coisas difíceis.Santa Teresa de Jesus



CAPÍTULO 4. Diz como o Senhor a ajudou a convencer-se a si
mesma para tomar o Hábito e as muitas enfermidades que Sua
Majestade lhe começou a dar.

1. Nestes dias em que andava com estas determinações havia
persuadido a um meu irmão que se fizesse frade, falando-lhe da
vaidade do mundo. E combinamos entre nós ir um dia, muito cedo, ao mosteiro onde estava aquela minha amiga que eu tinha muita afeição. 

Nesta minha última determinação eu já estava decidida que iria para qualquer convento onde pensasse servir mais a Deus ou que meu pai quisesse. Eu  olhava ao remédio da minha alma, porque não fazia  caso do descanso.

Recordo-me,  com toda a verdade, que quando saí
de casa de meu pai foi tal a aflição, que não creio que seja  maior quando eu morrer. Parece que cada osso se separava um do outro, pois, como não tinha o amor de Deus a contrabalançar o amor de pai e parentes, fazia  tudo com uma força tão grande que, se o Senhor não me ajudasse, não teriam bastado as minhas considerações para ir adiante. Aqui deu-me o Senhor ânimo contra mim, de maneira que o pus em obra.

2. Ao vestir o Hábito, logo o Senhor me deu a entender como
favorece os que se esforçam para O servir. Isto ninguém percebeu
em mim, mas sim uma grandíssima vontade. Nessa altura deu-me um tão grande contentamento de estar naquele estado, que jamais me faltou até hoje. Deus mudou a aridez da minha alma numa
grandíssima ternura. Davam-me deleite todas as coisas da Religião.

E verdade que andava varrendo algumas vezes nas horas que
costumava me ocupar em me enfeitar e divertir, e, lembrando-me que estava livre daquilo, me dava uma nova alegria que me espantava e não podia entender de onde me vinha.

Quando  me lembro disto, não há coisa que se ponha diante de mim,
por difícil que seja, que duvide de a cometer. Já tenho experiência
em muitas coisas, se  a princípio me esforço para me determinar a fazê-lo (sendo só por Deus), Ele quer -para mais merecermos - que a alma sinta aquele pavor até começar e quanto maior for, se se vai por diante, maior e mais saboroso o prêmio se torna depois. 

Até mesmo nesta vida Sua Majestade paga por vias que só quem goza disso o entende. Isto sei-o por experiência, como tenho dito, em muitas coisas difíceis; e assim, jamais aconselharia, se fosse
pessoa que tivesse aconselhar que, quando uma boa inspiração
nos bate à porta muitas vezes, se deixe com medo de a pôr em obra.
Se é desnudamente só por Deus, não há que temer que suceda o mal, que poderoso Ele é para tudo. Seja bendito para sempre. Amém.

3. Bastavam, ó sumo Bem e descanso meu!, as graças que me
tendes feito até aqui, trazendo-me - por tantos meios da Vossa
piedade e grandeza - a este estado tão seguro e nesta casa onde havia muitas servas de Deus, das quais eu pudesse ter o exemplo para ir crescendo em Vosso serviço. Não sei como hei-de passar daqui, quando me recordo o modo da minha profissão e a grande
determinação e contentação com que a fiz e do desposório que fiz
conVosco. Isto não o posso dizer sem lágrimas, e haviam de ser de
sangue e me quebrar  o coração, e não seria muito pesar para o
que depois Vos ofendi.

Parece-me agora que tinha razão em não querer tão grande
dignidade, pois tão mal havia de usar dela. Mas Vós, Senhor meu,
quisestes ser - quase vinte anos em que usei mal desta graça - o
agravado, para que eu fosse melhorada. 
Não parece, meu Deus, senão que prometi não guardar coisa do que Vos havia prometido, embora não fosse essa então a minha intenção. Mas vejo depois as minhas obras, que não sei que intenção tinha, a não ser para que mais  veja quem Vós sois,   meu Esposo, e quem eu sou. 

Pois é verdade que muitas vezes tempero o pesar das minhas grandes culpas com a alegria que me dá compreender  a multidão das Vossas misericórdias.

4. Em quem, Senhor, podem elas assim resplandecer como em mim,
que tanto obscureci, com minhas más obras, as grandes graças que
  começastes a me fazer? Ai de mim, meu Criador, que, se quero dar
desculpas, não tenho nenhuma, nem tem ninguém a culpa senão eu!

Porque se eu Vos pagasse algo do amor que começastes a me
mostrar, não o poderia eu empregar em ninguém senão em Vós e
com isto remediava tudo. Pois não o mereci, nem tive tanta
ventura, valha-me agora, Senhor, a Vossa misericórdia.

5. A mudança de vida e de manjares fez-me dano à saúde e embora o contentamento fosse muito, não bastou. Começaram-se-me a
aumentar os desmaios e deu-me um mal do coração tão
imensamente grande que causava espanto a quem o via, e outros
muitos males juntos, e, assim, passei o primeiro ano com muito má
saúde, todavia parece que não ofendi nele muito a Deus. 

E como o mal era tão grave que me privava quase sempre dos sentidos - e algumas vezes de tudo ficava sem eles - era grande a diligência que meu pai fazia para buscar remédio. Como não lhe dessem os médicos daqui, procurou levar-me a um lugar que tinha muita fama de se curarem ali outras enfermidades e assim disseram que fariam à minha enfermidade. Foi comigo essa amiga de quem já falei e era antiga na casa.
No convento onde eu era freira não se prometia clausura.

6. Estive, quase um ano, ali padecendo durante três meses tão
grandíssimos tormentos em curas tão violentas que me fizeram,
que não sei como as pude sofrer. Enfim, embora as sofresse, não as
pôde suportar o meu natural, como direi.

Havia de começar a cura no princípio do Verão e eu fui no princípio
do Inverno. Todo este tempo estive em casa da minha irmã que
disse que vivia na aldeia, esperando o mês de Abril, porque estava
ali perto e para não andar de lá pra cá.

7. Na ida, aquele meu tio que já disse estar no caminho, deu-me um
livro: chama-se «Terceiro Abecedário». Trata de ensinar oração de
recolhimento. E, embora neste primeiro ano tivesse lido bons livros
(pois não quis mais usar os outros, porque já entendia o mal que
me haviam feito), não sabia como proceder na oração nem como
recolher-me. 

Assim aproveitei muito dele e determinei-me a seguir
aquele caminho com todas as minhas forças. Como já o Senhor me
tinha dado o dom de lágrimas e gostava de ler, comecei a ter esses
momentos de solidão e a confessar-me sempre e a começar aquele
caminho tendo aquele livro por mestre; porque eu não encontrei
mestre - digo confessor que me entendesse -, embora procurasse
durante vinte anos, depois do que contei. Isto fez-me muito
mal e voltei muitas vezes atrás e até de modo de me perder, porque, se o fosse, ajudar-me-ia a sair das ocasiões que tive de ofender a
Deus.

Começou Sua Majestade a dar-me muitas graças nestes
princípios. Foram quase nove meses os que passei nesta solidão,
embora não tão livre de ofender a Deus como o livro me dizia; mas
sobre isso eu passava parecendo-me quase impossível tanta
guarda. 

Tinha de não cometer  pecado mortal e prouvera a Deus que
tivesse tido sempre. Dos veniais, fazia pouco caso e isto foi o que
me arruinou. Começou-me, pois, Sua Majestade a fazer tantas
graças nestes princípios e a regalar-me tanto por este caminho que,
 ao fim do tempo de  estar aqui, me a graça  de me conceder 
oração de quietude e algumas vezes chegava à de união, embora eu
não entendesse o que era uma e outra e  apreciava muito,
pois creio me foi grande bem entendê-lo. 

Verdade é que durava tão pouco esta união que não sei se seria uma Ave-Maria; mas ficava com uns efeitos tão grandes que, não tendo neste tempo vinte anos, me parecia trazer o mundo debaixo dos pés, e assim recordo-me que me faziam pena os que seguiam o mundo, embora fosse em coisas lícitas.

Procurava mais que podia trazer Jesus Cristo, nosso Bem e
Senhor, presente dentro de mim e este era o meu modo de oração:
se pensava em algum passo, representava-O no interior, embora
gastasse mais tempo em ler bons livros, que era toda a minha
recreação. 

É que Deus não me deu talento para discorrer com o entendimento nem de me aproveitar da imaginação. Tenho-a tão entorpecida que, até para pensar e representar trazer em mim - como
procurava fazer - a Humanidade do Senhor, não conseguia. 

E ainda por esta via - por não poderem ajudar-se do entendimento - as almas chegam mais depressa à contemplação se perseveram, é
muito trabalhoso e penoso. Se falta a ocupação da vontade e o amor
ter coisa presente em que se ocupe, fica a alma como sem arrimo
nem exercício; causa grande pena a solidão e a aridez e dão
grandíssimo combate os pensamentos.

8. A pessoas que tenham esta disposição convém-lhes ter mais
pureza de consciência que as que podem operar com o entendimento.

Porque, quem medita no que o mundo é, e no que deve a Deus, 
no muito que Ele sofreu, no pouco que O serve, e o que o Senhor
dá a quem O ama, aprende a doutrina para se defender dos maus pensamentos e das ocasiões e perigos. 

Mas, quem não se pode aproveitar disto, tem maior perigo ou dificuldade e convém-lhe ocupar-se muito na leitura, pois  de sua parte não pode tirar nenhuma ideia ou consideração.

Àqueles que procedem desta maneira, em lugar de oração mental
que não podem ter, é-lhes necessário ler, embora seja pouco o que
lêem. E tão penosíssima é esta maneira de proceder que, se o
mestre que ensina insiste em que a oração seja sem leitura - o que
ajuda muito a recolher a alma em oração - e, sem esta ajuda, os
fazem estar muito tempo na oração, digo que será impossível
permanecerem muito nela, e fará mal à saúde se se confia , porque é coisa muito penosa.

9. Agora parece-me que o Senhor providenciou que não encontrasse quem me ensinasse, porque foi impossível - segundo julgo - perseverar os dezoito anos que passei este trabalho e em todos eles grandes aridezes, por não poder, como digo, meditar. 

Em todos eles, a não ser acabando de comungar, jamais ousei começar  ter oração sem um livro. Temia tanto minha alma estar sem ele na oração, como se contra muita gente saísse a pelejar. 

Com esta ajuda - que era como que uma companhia ou escudo em que aparava os golpes dos muitos pensamentos - andava consolada porque a aridez não era o normal, mas, sempre que me faltava livro, logo se desbaratava a minha alma. E os pensamentos, que andavam perdidos, com isto começava eu a recolher e a levar a alma como de um fôlego.

Muitas vezes, abrindo o livro, nada mais era preciso. Outras lia
pouco, outras muito, conforme a graça que o Senhor me fazia.
Parecia-me a mim, nestes princípios que digo, que, tendo eu livros e
tendo solidão, não havia perigo que me arrancasse de tanto bem; e
creio que - com a ajuda de Deus - fosse assim, se tivesse tido mestre
ou pessoa que me avisasse de fugir das ocasiões nos princípios e
me fizesse sair, com brevidade, se nelas entrasse. 

E, se então o demônio me tivesse acometido a descoberto, julgo que, de modo algum, eu voltaria a pecar gravemente. Mas foi tão sutil e eu tão ruim, que todas as minhas determinações de pouco me
aproveitaram, ainda que de muitíssima ajuda os dias que servi a
Deus, para poder sofrer as terríveis enfermidades que tive, com tão
grande paciência como a que Sua Majestade me deu.

10. Muitas vezes tenho pensado, espantada, na grande bondade de
Deus e a minha alma tem-se regalado de ver a Sua grande
magnificência e misericórdia. Seja bendito por tudo! Tenho visto
claramente Ele não deixar sem paga, até mesmo nesta vida, nenhum
desejo bom. 

Por ruins e imperfeitas que fossem minhas obras, este
meu Senhor as ia melhorando e aperfeiçoando e dando valor. Os
males e pecados logo os escondia. Até os olhos de quem as viu
permite Sua Majestade que fiquem como cegos e lhes tira da
memória; doura as culpas; faz resplandecer uma virtude que o
mesmo Senhor põe em mim, fazendo-me quase força para que a
tenha.

11. Quero voltar ao que me mandaram. Digo que, se houvesse de
dizer sempre o modo como o Senhor fez comigo nestes
princípios, seria necessário outro entendimento - e não o meu - para saber encarecer o que neste caso Lhe devo e a minha grande ingratidão e maldade, pois tudo isto esqueci. Seja para sempre bendito, que tanto me tem suportado. Amém.

LIVRO DA VIDA - Santa Teresa de Jesus de Ávila


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